A qual ideologia geopolítica o filme tarzan poderia ser relacionado

Por Patrícia de Santana Souza

Ao fazer referência ao continente africano nos vem à memória imagens de filmes que marcaram a nossa infância, onde éramos convidados a nos aventurar nas florestas à procura de algum tesouro perdido, cemitério de elefantes, ou um Safári, sem precisar sair do sofá. Como não lembrar das aventuras dos filmes de Indiana Jones (1981-2008), da atuação do comediante Eddie Murphy em Um Príncipe em Nova York (1988)? Ou do sucesso de bilheteria produzido pela Walt Disney Pictures, O Rei Leão (1994)?

O continente africano foi palco de sociedades complexas e diversas, dotado de extensa riqueza geográfica e cultural, que se expressa na imensa variedade de línguas, concepções míticas, filosóficas, religiosas. No entanto, toda essa grandiosidade e diversidade são ocultadas, e em seu lugar temos as representações depreciativas, que foram ou são fabricadas pelos grupos dirigentes, objetivando legitimar a sua supremacia na sociedade. Como afirma Marcos José de Melo1: “a África tem sido, mais do que qualquer outro continente, alvo de visões estereotipadas que constituem um véu de preconceitos que ainda hoje marcam a percepção de sua realidade”. As imagens negativas do continente africano e dos seus habitantes foram (re)fundadas de acordo com a conjuntura, o tempo e o espaço, forjando ideologias que naturalizava e justificava a dominação dos africanos.

A produção destas concepções conta com muitos instrumentos. O cinema, devido ao seu grande alcance, constitui um poderoso veículo de produção e disseminação dessas representações. A imagem transmitida através da obra cinematográfica não ilustra nem apresenta a realidade, ela a reconstrói a partir de uma linguagem própria.

São muitos os filmes que utilizaram a África em seus enredos. No entanto para o estudo em questão, optamos por uma trama que teve grande repercussão na literatura, no cinema, nas histórias em quadrinhos e nos seriados, a saber: a história sobre Tarzan. Tarzan, o filho da selva (1932)2, foi o primeiro filme do cinema sonoro, já Tarzan (1999)3, por ter sido a primeira animação sobre o “herói da selva”, grande sucesso de bilheteria que acabou se desdobrando nos dois longa-metragem Tarzan e Jane (2002) e Tarzan 2 (2005) e uma série de televisão. Partimos do pressuposto que os filmes sobre Tarzan foram grandes difusores das imagens sobre a África que permeiam o imaginário ocidental sobre o continente.

Escrito pelo norte-americano Edgar Rice Burroughs em 1912, o romance “Tarzan of the Apes” (Tarzan dos macacos)4, foi a primeira história sobre Tarzan. Devido ao sucesso Burroughs escreveu vinte e quatro romances sobre o herói das selvas. No Brasil foram publicados 18 livros pela Companhia Editora Nacional a partir de 1933, na coleção Terramarear. Vale ressaltar que as histórias de Burroughs serviram de inspiração para história em quadrinhos, seriados e filmes.

Edgar Burroughs escreveu o primeiro livro sobre Tarzan no momento em que a África estava sendo submetida à dominação de países europeus. Segundo o historiador Albert Adu Boahen5, o processo de colonização da África pode ser dividido em dois períodos. O primeiro entre 1880 a 1910 caracteriza-se pela conquista e ocupação de quase todo o continente africano pelas potências imperialistas. O momento posterior a 1910 constitui-se pela consolidação e exploração do sistema.

Tarzan dos Macacos” foi escrito no contexto do segundo momento, em 1912, e sua história se passa no período anterior, entre 1888 a 1909. O autor não apenas escreveu neste período, como também utiliza este acontecimento na trama. Deste modo, a partir da obra é possível perceber como a escritura do livro foi influenciada pela sociedade em que Burroughs estava inserido.

Assim, o livro “Tarzan dos Macacos” reforça em suas linhas a crença na superioridade da raça branca e a inferioridade biológica, mental e cultural dos povos do continente. Tendo em vista que o livro foi escrito justamente no período da partilha da África, acreditamos que este se constituiu como um grande monumento à legitimação da colonização. Tarzan aparece como um símbolo da supremacia racial branca, o que por sua vez foi apontado como uma das justificativas da partilha.

Diante da grande repercussão da obra de Burroughs, Tarzan, o herói das selvas, foi o personagem com maior número de adaptações para o cinema, um total de 52 filmes, aproximadamente, produzidos até os dias de hoje. O primeiro filme foi exibido em 1918, período do cinema mudo. A obra arrecadou mais de um milhão de dólares, tornando-se o primeiro da história do cinema a atingir esta proeza6. Sucesso ainda maior fez o filme Tarzan, o filho da Selva (1932), primeiro Tarzan do cinema sonoro e também o mais famoso. Dirigido pelo norte-americano W. S. Van Dyke, e interpretado pelo nadador Johhnny Weissmuller, Tarzan, o filho da Selva foi uma produção da MGM (Metro-Goldwyn-Mayer) num período em que a mesma se encontrava nos seus anos dourados.

A trama gira em torno da busca pela localização do cemitério de elefante, onde uma expedição inglesa pretende encontrar marfim. Nesta procura, a filha de um dos responsáveis pela expedição, Jane Parker, interpretada por Maureen O’Sullivan, é sequestrada por Tarzan, homem criado pelos macacos, e acaba se apaixonando por ele.

Comparado o filme “Tarzan, filho das selvas” (1932), com o livro percebe-se diferenças notáveis entre eles. Ao contrário do livro, no filme em nenhum momento é citada a colonização da África, embora este tenha sido produzido no contexto da ocupação do continente e consolidação do sistema colonial pelos países europeus. O continente africano somente é utilizado como pano de fundo, e as personagens, em sua maioria ingleses, entram na trama sem evocar o papel exercido pela Inglaterra em suas colônias.

O livro gira em torno da vida de Tarzan, enquanto o filme divide a história entre ele e a procura do cemitério dos elefantes por James Parker e Harry Holt. Por isso, Tarzan é apresentado já adulto, e não é revelado a sua origem ou como foi parar lá. Percebe-se que um terço do filme é dispensado para os exploradores, estes por sua vez, diferentemente do livro, estão em busca do cemitério para extrair marfim. Essa busca pelo marfim pode ser lida como símbolo da busca dos países europeus pelas riquezas do continente. Instalada a colonização, o desafio dos invasores era se apropriar dos recursos naturais de sua “propriedade”.

Os próprios personagens foram remodelados no filme, todos são ingleses e a única mulher do grupo é Jane – a Esmeralda do livro não entrou no elenco. Quando o filme inicia, os ingleses já estão instalados na África, proprietários de um armazém, eles comercializam com os nativos da região. James Parker e Harry Holt mostram-se familiarizado com a região e seus habitantes. Já no livro, o grupo é composto por norte-americanos e apenas um inglês e a relação entre eles e os habitantes do local é hostil, uma vez que são considerados pelos colonizadores como inferiores e cruéis.

A tropa francesa e as viagens de Tarzan a Paris e aos Estados Unidos são retirados do roteiro, mas foram acrescentados a ele o happy-end (final feliz), aquele que não consta no livro, mas não poderia faltar num filme clássico norte-americano.

Logo no início da película é perceptível a visão que cada personagem possui do continente africano. Para James Parker e Harry Holt, personagens coadjuvantes, responsáveis pela expedição, o continente é um “buraco maldito”, eles estariam dispostos a tudo para sair do lugar, e a todo o momento expressam o descontentamento por estar “nesse fim de mundo”. A protagonista Jane Parker, por sua vez, vê a “África” como um lugar exótico.

Em nenhum momento é revelado em qual região da África está sendo realizada a expedição, apenas um mapa é exibido em um das cenas, onde se pode visualizar o nome “Cameroon” (Camarões). Com exceção do mapa, é sempre mencionado o nome “África”, como se o lugar representasse todo o continente, ou como se a “África” fosse um país.

Os africanos ocupam no enredo três papéis, ou como parte integrante da expedição dos ingleses James Parker e Harry Holt, ou como negociadores dos mesmos, ou como parte dos “perigos” enfrentados pelos estrangeiros. Enquanto parte integrante da expedição, eles são vistos pelos ingleses como um meio para se chegar ao cemitério dos elefantes, e no decorrer da trama são mortos, na maioria das vezes pelos animais selvagens. Como negociadores, eles são mencionados pelos ingleses como “tribos”, cujos costumes são tratados por James Parker, Harry Holt e Jane de forma sarcástica. Por fim, já no final da trama, eles são apresentados como os perigos a serem enfrentados para chegar até o cemitério dos elefantes.

No filme, a ideia de superioridade racial branca é simbolizada na figura de Tarzan, à medida que este consegue vencer todos os obstáculos apresentados (ele mata leopardo, gnu, leoa, leão, macaco). Os próprios habitantes da região são dizimados ao longo da trama. Tarzan mostra que para sobreviver naquele lugar não é para qualquer um, pois frequentemente é atacado por um animal, sendo sua força incomum e a amizade com os outros animais os motivos da sua sobrevivência.

A África de Tarzan (1932) é apresentada como um ambiente de clima insuportável, moradia de animais selvagens, a mercê de exploradores estrangeiros. Não há preocupação em especificar a região onde se passa a história, deixando implícita a ideia de homogeneidade. Ao mesmo tempo a homogeneidade dá lugar à diversidade, na medida em que apresenta povos, mesmo fictícios, diferentes entre si. Contudo tal diversidade é apresentada de forma negativa

O filme norte-americano de animação Tarzan (1999), também baseado na obra de Edgar Rice Burroughs, foi dirigido por Chris Buck e Kevin Lima. Tarzan (1999) é uma produção da Walt Disney Pictures que tem como alvo o público infantil. O filme foi considerado um dos maiores clássicos do cinema neste gênero.

Segundo Ricardo Quartim7, no artigo Lenda da Selva, era um desejo de Edgar Burroughs fazer uma animação de Tarzan, e o “desenho deveria se aproximar da excelência da Disney”. Passadas seis décadas, o desejo tornou-se realidade.

A produção cinematográfica da Walt Disney apresenta uma África selvagem, inabitável, uma vez que não existem pessoas na região. A costa é apenas habitada por animais, não possui nenhum vestígio humano.

A trama tem como eixo principal a vida de Tarzan, desde sua chegada à costa até o encontro com Jane. O grupo de exploradores é composto pelo inglês professor Porter, sua filha Jane Porter, e o guia Clayton, antagonista da trama. Eles desembarcam em algum ponto da costa africana com o intuito de estudar os gorilas.

Quanto à menção a “África” propriamente dita, ocorre em quatro momentos. No primeiro quando os elefantes discutem “se há piranhas na África”, o interessante é que um dos elefantes diz que as piranhas são oriundas da América do Sul, mas quando cita à África, não especifica o país ou região, onde elas se encontram. Em seguida duas cenas em que aparecem o nome “África”, a primeira em um globo terrestre, e a outra onde Clayton tenta se comunicar com Tarzan mostrando um grande mapa e um desenho de gorila. Vale destacar que tanto o globo como o mapa mostra o continente sem as divisões dos países, ou seja, apresenta-o de forma homogênea.

Outro momento, muito revelador por sinal, encontra-se na fala de Clayton, quando este começa a adentrar a costa: “… foi quando eu me dei conta que tinha nascido para caçar na África, e que Deus criou a África para… isso! (atira)” (TARZAN, 1999, 00:31:34 – 00:31:45). Em outras palavras, a África existe apenas para ser explorada pelo homem branco da maneira que lhe convém.

Esse mundo habitado por animais “selvagens” é contrastado com a “civilização” representada pela equipe dos pesquisadores e na tentativa deles em ensinar Tarzan a ser “civilizado”. Nesta tarefa Tarzan é apresentado às invenções humanas como o telescópio, a bicicleta, o zootrópio e imagens projetadas numa tela, mostrando animais, floresta, homem, Londres, as pirâmides egípcias, o sistema solar, estátua da liberdade, dentre outros. Interessante apontar que as pirâmides egípcias aparecem aqui como uma invenção fora da África. Tal ideia defende que os africanos seriam incapazes de produzir algo tão magnifico.

Nota-se que o filme Tarzan (1999), além de apresentar as características já mencionadas na película anterior, acrescenta-se a ele a questão da omissão, uma vez que tanto no livro “Tarzan dos Macacos”, quanto no filme Tarzan, o filho das selvas, tem-se a presença de africanos, que fazem parte da trama, ao contrário da animação.

Com o término da Segunda Guerra Mundial, verifica-se que tanto o governo soviético quanto o norte-americano lançaram seu peso militar, econômico e político, interessados em atrair os países colonizados para as suas esferas de influência. No entanto, com o fim da Guerra Fria, a África perdeu a importância estratégica. O continente é tratado como um grande vazio, o que interessa são seus recursos naturais e sua biodiversidade, as pessoas são consideradas como algo descartável. No filme Tarzan (1999) estas questões podem ser traduzidas pela ausência de nativos na região e a procura por macacos para pesquisas cientifica.

Nesta perspectiva, o presente estudo buscou analisar a imagem da África apresentada por duas produções cinematográficas norte-americanas, a fim de identificar a existência de continuidades ou rupturas quanto às formas de representar o continente. Ao nos voltarmos para o livro que deu origem aos filmes, notamos que a ideia da superioridade racial branca é intensamente divulgada. Tarzan surge como o homem branco criado por macacos e que se tornou rei da selva. Os habitantes da região seriam incapazes de tal feito. O livro reproduz os argumentos que foram utilizados como justificativa da colonização da África.

Os filmes não apenas dão continuidade ao tema central do livro, como também respondem ao seu contexto. Tarzan, o filho da selva (1932), reforça a ideia da superioridade racial, e vai além, ao destacar a figura do explorador a procura de recursos naturais. Os povos da região são apresentados com suas características e particularidades, no entanto, de forma pejorativa.

Tarzan (1999) apresenta uma África habitada apenas por animais. O interesse dos exploradores são outros, estudar os macacos. A ideia de superioridade fica explicita nesta película na medida em que o filme omite os habitantes da região.

A partir das análises empreendidas constatamos a existência de continuidades e rupturas quanto às formas de representar a África. As mudanças que ocorreram diz respeito ao próprio contexto em que os filmes foram produzidos. Neste sentido, o cinema norte-americano atuou como instrumento de propaganda política e ideológica.

Patrícia de Santana Souzaé graduada em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (2012). É professora de História da rede estadual de ensino e aluna do Programa de Especialização no Ensino da Sociologia no Ensino Médio pela Universidade Federal da Bahia.

BIBLIOGRAFIA

BURROUGHS, Edgar Rice. Tarzan, o filho das selvas. Tradução de Paulo Freitas. São Paulo: Companhia Editora nacional, vol. 6, 1968.

BOAHEN, Albert Adu. “África diante do desafio colonial.”In: História Geral da África: África sob dominação colonial, 1880-1935. BOAHEN, Albert Adu (Org.). Vol.: VII. Brasília: UNESCO, 2010

QUARTIM, Ricardo. Lenda da Selva. In: Revista Mundo dos Super-Heróis, n. 17. São Paulo: Europa, 2009.

NOTAS

3 TARZAN. Chris Buck e Kevin Lima (dir.). EUA: Walt Disney Pictures, 1999. (88 min.) [Título original: Tarzan].

4 BURROUGHS, Edgar Rice. Tarzan, o filho das selvas. Tradução de Paulo Freitas. São Paulo: Companhia Editora nacional, vol. 6, 1968.

Quais elementos da história de Tarzan podem ser associados ao imperialismo?

O imperialismo era a política de expansão e domínio territorial, com isso apareceram os desbravadores no filme de Tarzan, isso tudo com o intuito de construir uma sociedade naquele local, ou seja, uma expansão territorial.

Qual a relação da história do personagem Tarzan com contexto imperialista na África?

Tarzan surge como o homem branco criado por macacos e que se tornou rei da selva. Os habitantes da região seriam incapazes de tal feito. O livro reproduz os argumentos que foram utilizados como justificativa da colonização da África.

Como a história do Tarzan nos mostra uma justificativa imperialista?

A Lenda de Tarzan representa a brutalidade da exploração europeia no continente africano, ao mesmo tempo que relembra ao público o motivo de Tarzan e Jane, interpretados por Alexander Skarsgård e Margot Robbie, serem alguns dos personagens mais queridos do cinema.

O que o filme Tarzan nos ensina?

Resumo: Tarzan é uma criança criada na selva a parfir dos cuidados da gorila Kala, após o falecimento dos seus pais, na África. A obra demonstra o desenvolvimento do menino em harmonia com a natureza, em contraste com outros personagens que exploram os recursos naturais da região.

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