São exemplos de crimes que não admitem a tentativa Os Preterdolosos os Unissubsistentes os omissivos próprios e os de perigo concreto?

O autor estuda a figura da tentativa no Direito Penal diante do quadro da tentativa de homicídio qualificado de Cristina Kirchner

I – Tentativa

1. Pertence aos tempos modernos a concepção do delito imperfeito, sendo que os romanos não conseguiram tanto no Corpus Juris como no Digesto enfrentar o tema com termos técnicos, diferenciados e com formulação de princípios. A Lei Pompeia de parricidiis, as leis Cornelia de falsis et de sicariis, as leis Julia de adulteriis e de struprum, que eram disposições especiais, aplicaram indiferentemente a mesma medida abstrata de pena, fosse consumado ou tentado o delito. Havia casos em que o magistrado tinha um grande poder discricionário para fixar a medida da reprovabilidade do atuar desvalorado. No Direito justinianeu, havia ilícitos particulares em que, se uma ofensa tivesse ocorrido, nas leges Corneliae se cominava a pena do crime consumado contra atos preparatórios. Os glosadores não se debruçaram sobre o tema, chamando de attentado o delito consumado, assimilando-o ao perfeito. Com a Lei Carolina encontra-se a primeira definição legal de tentativa, dando partida para a elaboração de uma teoria objetiva, de forma a fazer a distinção entre atos preparatórios e atos de execução, bem como atenuando a equiparação nos casos de excepcionalidade. Como exemplo, cita-se a equiparação da consumação a tentativa no tipode evasão mediante violência contra a pessoa (“art. 352 do CP: Evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou indivíduo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa: pena – detenção, de 3 (três) a 1 (um) ano, além das pena correspondente à violência”). O Código napoleônico de 1810, ao adotar a fórmula commencement d’exécution, orienta as diversas legislações do século XIX. As dificuldades são transpostas pelo critério da univocidade ou da referibilidade, como instrumentos seguros para a distinção entre atos preparatórios e atos executórios. Define-se o critério da univocidade ou referibilidade como o sistema em virtude do qual, diante da tendência unilateral do gesto ou da atitude, pela significação unívoca de ato praticado, pode-se vislumbrar o objetivo-alvo do autor. O ato externo, por sua natureza, conduzirá univocamente ao resultado típico.

2. Carrara fixava a distinção entre a preparatio mediorum e a agressio operis. Carmignani afirmava que a tentativa principia sua existência com o primeiro ato visível do plano delitivo, que é o critério da univocidade. Coloca que, se equívocos, são preparatórios e inexiste tentativa; se unívocos, constituem atos de execução, e, verificada a não consumação por interrupção involuntária, ou executados todos os atos, por um caso fortuito, integra-se o injusto da ação imperfeito. A execução se inicia no momento em que o furtador lança mão sobre o cofre e, fechado, procura abri-lo, empregando meios físicos ou força para efetuar o furto; se é surpreendido e não pode, por isso, continuar a execução, a figura da tentativa se define, pois, verificada a intenção, manifesta e inequívoca pelos atos exteriores, que são executivos, há impedimento à realização típica por motivos independentes da vontade do autor. O ato preparatório é estranho à constituição da tentativa; ao passo que, o ato executório, é parte integrante. Se A, querendo matar B, embosca-se, à espera deste, A não pratica senão um ato preparatório de homicídio. Pois a emboscada constitui-se em uma ação equívoca que não fornece com exatidão o animus do autor. Contudo, se, à passagem de A, B levanta seu fuzil, faz pontaria para A, a quem deseja matar, e, no momento de acionar o cão da arma para desfechar o tiro, vê-se impedido de fazê-lo porque C lhe arrebata a arma, é manifesta a resolução de matar. Parte da doutrina sustenta que se A houvesse atirado contra B, meio idôneo para o resultado, a morte, não sendo uma circunstância qualquer, meramente fortuita, seria uma tentativa na segunda modalidade, que é o crime falho.

3. Os estudiosos do século passado se ocuparam do caso da tentativa de envenenamento, no qual se podem observar várias situações, dentre as quais jurídicas e fáticas, dando-se destaque à preparatória, entre o período da execução e o da sujeição à resposta penal (a. se A deitar veneno em alimentos, é ato preparatório, que escapa à aplicação de sanção penal; b. se os alimentos são colocados à venda ou à disposição a quem o autor pretende envenenar, torna-se clara e efetiva a inequívoca intenção dolosa – é ato de execução). Há tentativa se os atos são interrompidos involuntariamente, contra a vontade de quem os pratica; porém, se os atos de execução são todos praticados, por mero acidente ou caso fortuito, em relação ao efeito desejado, a tentativa se classifica como crime falho ou malogrado. O que é importante para a distinção entre crime tentado e o falho é que, no tentado ou imperfeito, há uma interrupção involuntária dos atos de execução, ao passo que no falho, se os atos são totalmente praticados, os efeitos não se realizam devido a uma causa acidental. A posição do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que não há distinção entre a tentativa imperfeita e o crime falho (STJ, HC 184.629/SP, 5ª T., rel. Min. Gilson Dipp, j. 19.5.2011). No crime tentado (tentativa simples, imperfeita, inacabada, conatus remotus), há a ocorrência de vontade dirigida ao fim ilícito, por meio de atos de execução, mas, pela ocorrência de atos de execução independentes da vontade do autor, ocorre a sua interrupção. Já no crime falho (malogrado, conatus proximus, tentativa acabada), com a intuição, compreendendo a prática de todos os atos de execução, há a circunstância de não realização do efeito desejado ou na consumação do injusto, por acidente ou meramente fortuito (quantum in ipso fuit et ad consummandum delictum necessarium putarit). A imperfeição advém exclusivamente da não obtenção do efeito pretendido, devido a caso fortuito ou acidente. Se A, desejando matar B, prepara a arma, faz pontaria e desfecha o tiro na pessoa visada, a qual, por circunstância puramente acidental, não é atingida, pratica um crime falho. Neste, são praticados os atos executórios. A imperfeição advém exclusivamente da não obtenção do efeito pretendido, devido a caso fortuito ou acidente.

4. A univocidade é uma condição essencial para que um ato externo assuma o caráter de ato de execução, punível como tentativa. A idoneidade ou aptidão é outro requisito essencial, pois o exterior deve ser apto para atingir o objetivo-alvo ilícito. No que tange ao crime impossível, provém do objeto ou dos meios necessários, podendo, em ambas as hipóteses, ser absoluto ou relativo. É absoluto quando a impossibilidade oriunda dos meios é ineficaz para atingir o meio almejado (revólver não carregado ou com defeito mecânico). Quando é relativo, há a presença do objeto, que não se encontra no lugar que o autor imaginava, isto é, inexistia o objeto material da ação (A atira para dentro do banheiro, onde pensava que sua amante B, que desejava matar, se encontrava, como de hábito, mas dali se retirara momentos antes). Tentativa é o ato praticado pelo autor, objetivando alcançar certo resultado, quando tal ato é inadequado ou impróprio para a produção do desvalor do resultado. A legislação pátria define o crime consumado e o tentado.

5. Para que exista a tentativa é necessário que concorram o dolo e um início de execução e, para que seja punível é preciso que não se produza o resultado por causas independentes da vontade do autor. Há início da execução quando o autor realiza uma das condutas constitutivas do tipo ou, segundo seu plano delitivo, pratica atos independentemente anteriores à realização típica, que coloquem em perigo o bem jurídico. Pode suceder que por circunstâncias fortuitas o resultado não sobrevenha: a) por ter sido impedida a prática de todos os atos que eram necessários para produzi-lo; b) por ter sido obstada a verificação do resultado que se deveria seguir à ação já completa. Em tal caso surge a figura da tentativa, hoje abrangendo também o crime frustrado. As modernas legislações não reconhecem a existência de uma etapa intermediária entre a tentativa e a consumação e, por isso, sancionam da mesma forma o crime tentado e o frustrado. A diferença entre ambos é estrutural, embora seja correto valorá-las da mesma forma. Seguindo Alberto Gandino, jurista que floresceu no século XV, teriam-se quatro princípios: a) qui cogit nec agit nec perfict (atos internos imprevisíveis); b) qui cogitat et agit sed non perfict (atos de execução sob duplo aspecto: delito tentado e delito falho); c) qui cogitat et agit et perfict (delito perfeito e consumado); d) qui agit et perfict sed non cogitat (delito culposo ou caso fortuito). Tais princípios, claros e concisos, prestaram auxílio na construção da teoria do crime imperfeito. Para sua melhor demonstração, devem-se dividir os atos externos em dois grupos ou classes: a) atos preparatórios e b) atos de execução do fato típico. Não se trata de punir a mera resolução contra o Estado, mas a violação por meio de um fato típico. Ao Direito moderno constrange o exagero da doutrina romana: “Eadem enim, severitate voluntatem sceleris qua effectum puniri iura voluerunt”. Preparar-se para executar não é executar.

6. As etapas (iter criminis) de realização da conduta punível-dolosa são: ideação (cogitação), preparação, execução e consumação. Na ideação, há um processo interno em que o autor elabora seu plano delitivo e estabelece a meta de sua ação, elegendo, a partir dos fins, os meios e as etapas para o sucesso do fim colimado, regida tal etapa pelo princípio cogitationem poena nemo patitur. A preparação é o processo pelo qual o autor disponibiliza os meios eleitos para criar as condições para obter o fim ilícito. A execução é a utilização dos meios ou instrumentos eleitos para a realização do plano delitivo. Na execução, há dois momentos de desenvolvimento: a) o autor ainda não terminou integralmente seu plano; b) o autor realizou tudo quanto era requerido para a consumação. Na consumação, o autor obtém o fim típico através dos meios empregados. A ideação e a preparação são penalmente per se irrelevantes. Quando o legislador estabelece os marcos mediante os quais protege um bem jurídico, só diante de tais limites se poderá dizer se é execução ou mera preparação. São típicos os elementos da tentativa: a) início da execução de fato punível; b)vontade dirigida à consumação; c)não superveniência do resultado por circunstâncias alheias à vontade do autor. A tentativa pressupõe, como crime não consumado, não obstante a prática pelo autor de atos de execução, que não ocorra o resultado típico do injusto da ação, a que se relaciona o elemento subjetivo e causalmente ligado à conduta, mesmo que presentes os demais elementos integrativos.

7. O que caracteriza a tentativa é que a ação não se ajusta por completo na descrição contida no tipo. Quando o autor pratica atos de execução de um crime que decidiu cometer só há tentativa. É irrelevante preencher o conteúdo da decisão de um querer condicionado (A só furtará os quadros da residência de B se encontrar, como de costume, aberta a janela. Se ao se dirigir para a referida casa, levando consigo uma mala para esconder o produto do furto, verifica que a janela está fechada, sendo detido nas imediações da casa, não há tentativa). O que a norma reprime não é a mera causação do resultado, mas a orientação consciente de vir a realizá-lo. A ação proibida está composta não só pelo do movimento corporal, mas também pela vontade que o dirige até a meta estabelecida. O componente subjetivo da ação (finalidade) é a vontade atual de realização ilícita, não devendo ser confundida a finalidade com as motivações ou meras resoluções. O autor atua dolosamente objetivando a realização do verbo típico, o crime perfeito e acabado. Inexiste dolo com especial fim de agir na tentativa, pois o dolo será sempre do delito do tipo consumado (A atira em seu desafeto B para matá-lo e não somente para tentar matá-lo). A tentativa é a realização típica incompleta, jamais constituindo um tipo autônomo, mas sim subordinado, dependente, e sendo a extensão do tipo básico ou fundamental.

8. O Código Penal brasileiro, subordinando a existência do injusto à verificação de um resultado lesivo ou perigoso, proclamou implicitamente a impunidade das simples resoluções criminosas. Nem fazem exceções a esta regra as figuras da ameaça e da apologia do injusto, nas quais não se pune a mera exteriorização da vontade ou ideia de delinquir, mas a efetiva lesão jurídica que acarreta a tranquilidade individual e a paz coletiva. À resolução criminosa seguem-se, muitas vezes, os atos de preparação do injusto. Savigny, no famoso discurso de Bérgamo, no Straatsrat da Prússia, exaltando a personalidade do indivíduo e em defesa da liberdade, ao examinar o início da execução como elemento constitutivo da tentativa, qualificou-o como a mais excelsa garantia do cidadão frente ao Estado. Superada a fase romântica da exaltação da personalidade do indivíduo, o princípio ainda prevalece ao lado do dogma do nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege, porque o Direito deve ser um instrumento de garantia da liberdade humana.

II - Teorias da tentativa

1. Após a consagração da fórmula commencement d’exécution (Código Penal francês de 1810), a doutrina buscou precisar critérios para solver o problema dogmático de distinção dos atos preparatórios do começo da execução, que, em resumo, pode-se distinguir: a) teorias de orientação objetiva, que se subdividem em próprias (formal de Beling, mistas, escéptica) e impróprias (pragmática de Carrara, as da causalidade e as materiais). Nas primeiras, só é executivo o ato típico; ao passo que, nas segundas, admite-se que alguns atos se considerem executivos, embora não sejam. Em primeiro lugar, deve-se socorrer do perigo concreto ao bem jurídico e, em casos duvidosos, à comprovação de a ação realizada ter colocado em risco ou não o bem jurídico protegido. As teorias mistas aceitam que o ato é executório se realiza parte do fato descrito pelo tipo. Diferem das teorias formais porque, para determinar os limites e o conteúdo do fato, recorrem à sua descrição, e, mais, aos complementos materiais. A teoria formal de Beling advoga que a inclusão do ato no esquema importa decidir se tal conduta pode ser expressa pelo verbo empregado para descrever a ação típica total. Defende que na relação entre o ato e o tipo é avaliado in abstratum: retira da apreciação dos atos executórios o empirismo judiciário. Só existiria tentativa quando fossem realizados atos executórios de uma parte da conduta típica respectiva; b) teorias de orientação subjetiva, que se subdividem em extremas e limitadas. Pode-se ainda deduzir: a) atos preparatórios e outras condutas preliminares reprovadas ex lege; b) a teoria do crime frustrado (a distinção entre “tipo tentado” e “tipo frustrado” é que no primeiro o autor interrompe o seu atuar e no segundo ocorre quando acaba de obrar). Vê-se que os objetivistas com grande vulto na doutrina italiana fundamentam a punibilidade da tentativa na própria existência dos atos praticados no mundo externo que possuam potencialidade de causar o resultado perseguido, expressado na probabilidade de dano concreto jurídico. Já o conjunto de teorias subjetivistas, com patamar no injusto da ação e não no resultado, em oposição aos objetivistas, tem como base a violação do dever de obediência. Von Buri, seu formulador, envia à consideração causal. Na concepção da teoria subjetivista, a tentativa inidônea é punida, pois também revela a oposição à tutela do bem jurídico.

2. Observa-se também que a teoria sintomática chega próximo dos subjetivistas. Para esta teoria, pouco importa ter ou não sido alcançado o êxito da empreitada, idônea ou não, devendo-se punir tão só a vontade. Por último, os impressionistas, ecléticos ou mistos, advogam a punibilidade da tentativa só exista na conduta com a perda de confiança na ordem jurídica constituída, gerando um sentimento de insegurança na sociedade. Jescheck sustenta que o fundamento da punição da tentativa é “a vontade contrária a uma norma de conduta”, só se justificando a punição quando abala a confiança do cidadão na vigência da ordem jurídica. Contemporaneamente, na direção da restauração da confiança social, diante de um Direito Penal máximo, prescinde-se da afetação a um bem jurídico e globaliza-se a proteção buscando na emergência a sensação da recuperação da paz social. Tal orientação dá um sentido político-criminal para a discussão temática, diante do princípio garantista e do estado democrático de direito.

III - Fase objetiva

Os práticos italianos diferenciavam o conceito remoto do próximo, sancionando apenas o último. A vexata quaestio é encontrar uma solução que permita estabelecer em que casos a tentativa é remota, ou quando é próxima. Foi a partir da promulgação do Código Penal francês de 1810 que se estabeleceu que fossem puníveis os atos do iter que configurem um princípio de execução (commencement d’execution), ficando a tentativa vinculada ao tipo consumado. Houve várias reações contra a fórmula francesa adotada também na legislação brasileira, vingando, porém, condutas, que, no ângulo de política criminal, estima-se conveniente reprimir.O Código soviético de 1926 foi o primeiro a intentar uma solução desse tipo, visto que em seu art. 15 renuncia ao princípio do começo de execução, limitando-se a exigir a concorrência de uma ação “dirigida diretamente” à comissão do injusto da ação. O legislador italiano adotou uma fórmula excluindo o “princípio de execução”, exigindo unicamente a realização de “atos idôneos, dirigidos de modo inequívoco a cometer um crime”. As legislações modernas apresentam duas posições: a) pela parte tradicional, entendem que tentados são aqueles atos que realizam parcialmente a conduta descrita pelo tipo do correspondente ao delito consumado; b) procura precisar de forma autônoma os requisitos que reúnem a ação para dar origem a uma tentativa.

IV - Fase subjetiva

1. O dolo da tentativa tem análogas dimensões do tipo consumado, mas, como é particular de uma figura legal em que a ação não chegou ao término, apresenta caracteres diferentes do dolo no crime consumado. É dominante na doutrina que o dolo da tentativa é idêntico ao do tipo consumado. Há peculiaridades do dolo da tentativa que merecem ser abordadas. Inicialmente, pode-se afirmar que inexiste “dolo de intentar”, visto que, se o autor só se representa parcialmente na execução do ato, atua atipicamente (a tentativa simulada de uma ruptura de obstáculo pode consumar algum dano, porém nada tem com a tentativa). Na verdade, se o plano contempla a execução, o agente provocador será punido a título consumado, nada tendo a ver com o “dolo de intenção”; porém, se o plano teve uma interrupção antecipada, o obrar do autor permanecerá impune. Desta forma, a ideia do dolo de tentativa é insustentável. Correta a postura de Mezger de que o dolo na tentativa se comporta como um elemento subjetivo do injusto. Nos tipos de resultado cortado é exigido que a vontade fique exteriorizada até determinado ponto, ao passo que na tentativa tais circunstâncias são diferentes, visto que a conduta é igualmente punível, tanto se uma fração apreciável do dolo não se realize como até que seja ínfima.

2. Aliás, nos tipos de resultado cortado não importa a realização do propósito ulterior (a valoração do furto é inalterado se o autor conseguiu ou não o lucro com a subtração da coisa), já a tentativa se transforma em consumação quando a finalidade do autor exterioriza-se por completo. Por antecipação, os caracteres diferenciais do dolo na tentativa repousam com seu finalismo excedente nos atos cumpridos e seu menor conteúdo volitivo. O dolo na tentativa requer, como no injusto da ação consumado, uma vontade dirigida a um fim ilícito. O primeiro rasgo diferencial do dolo na tentativa a ter uma dimensão excedente à dos atos executados faz destacar mais seu caráter finalista. Em suma, o desdobramento dos elementos espirituais da tentativa constitui uma desnecessária superpenetração de algo que já se havia manifestado ao ressaltar o caráter excedente e, portanto, finalista do dolo na tentativa. Adjetivar o dolo da tentativa como excedente não implica conciliar o conato como injusto de tendência transcendente. A estrutura subjetiva da tentativa não é composta como nos ilícitos de tendência interna transcendente. O dolo da tentativa requer no sujeito ativo a representação de todas as características existenciais na realização do tipo consumado. Há compatibilidade entre o dolo eventual e o crime tentado (STJ, AgRg no REsp 1.176.324/RS, 5ª T., rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 16.2.2016).

V - Figuras especiais no tratamento da tentativa

1. No estudo da tentativa, vislumbra-se como um de seus pressupostos a fragmentação da conduta, isto é, torna-se necessário como pressuposto prévio que a ação final seja fragmentável, cumprindo-se em vários momentos. A tentativa supõe o início da execução que não chegou ao fim por circunstâncias alheias à vontade do autor. Assim, quando o objetivo final for o resultado de um só ato, diante do aspecto estrutural do tipo, seu conato será juridicamente inconcebível. A doutrina, em geral, nega a possibilidade de uma tentativa nos crimes preterdolosos, como também a impossibilidade nos qualificados pelo resultado. Chama-se de preterintencional quando a conduta realiza um resultado mais grave que o almejado pelo autor do fato punível. Orienta-se no sentido de negar a configurabilidade da tentativa nos preterintencionais, porque, em termos gerais, não seria concebível a tentativa de um resultado que não fosse doloso, admitida somente em relação aos crimes dolosos abarcados pelo resultado qualificador doloso. Quando a figura contém uma condição objetiva de punibilidade, a tentativa só é possível se se cumpre a ação inclusa. A doutrina dominante considera as condições como pressupostos materiais da punibilidade que se encontram fora do tipo de injusto e da culpabilidade, embora relacionadas com o fato. Se a condição se cumpre em virtude de uma associação causal distinta da requerida pela respectiva figura, a tentativa deverá ser excluída (A se propõe a auxiliar B a suicidar, mas este vem a falecer antes de prestar-lhe a colaboração solicitada. A tentativa não é punível, da mesma forma que não seria o tipo consumado, quando foi prestada ao suicida toda a ajuda necessária, mas antes de empregá-la morre de acidente).

2. Por condição objetiva de punibilidade, deve-se entender aquela causa ou circunstância material de todo externa à série causal normal dos atos, de cuja presença depende a punição da conduta que, não obstante, pode resultar per se constitutiva do delito, se for considerada a tentativa factível de apresentar-se, sempre que a condição objetiva extrínseca manifestar-se anteriormente. Não é pacífico o entendimento sobre a posição sistemática das condições objetivas de punibilidade, não podendo confundir-se com os crimes qualificados pelo resultado. As condições objetivas de punibilidade são como elementos do fato punível, situados fora do tipo de delito, porém previstos no complexo típico como manifestação da valoração de sua punibilidade. Sendo os tipos unissubsistentes figuras que se caracterizam por seu início e consumação instantânea com a realização do ilícito da ação em um só ato, torna-se impossível a presença da tentativa, a qual requer para a sua existência uma pluralidade de atos que autorizam a punição daqueles considerados como exteriorização da vontade punível. Seria difícil a aplicação penal como nos ilícitos quod unico actu perficitur ou instantâneos, isto é, onde o resultado tem uma consumação e exaurimento instantâneos, razão pela qual a tentativa não pode apresentar-se (injúria verbal, falso testemunho). Em tais modalidades não há um processo executivo fracionável, não permitindo um início de execução sem que ipse iure se produza a consumação.

3. Por outro lado, no tipo plurissubsistente, constituído com a presença de diversos atos necessários para a obtenção de um fim ilícito, torna-se viável a possibilidade da tentativa. No crime instantâneo, a conduta atinge o resultado naturalístico e jurídico; já no permanente, há necessidade da insistência dirigida ao objetivo eleito através da reiteração contínua de atos para atingir o resultado jurídico relevante. Nos crimes permanentes, caracterizados por uma conduta reprovável que se protrai no tempo e que produz como consequência uma suspensão no estado de antijuridicidade, há possibilidade da tentativa sempre que seja interrompida a série causal factual, apresentando-se antes da realização do obrar que origina o estado de ilicitude consumado no tipo. No que tange ao crime de perigo, a punição do atuar ao ataque ao bem jurídico sem requerer a prevenção de um resultado de dano não se afigura a possibilidade da tentativa; seria a tentativa da tentativa, ou melhor, o perigo do perigo. A tentativa inidônea punível gira em certa direção, não obstante o entendimento que possa ser dado em certos casos específicos, como no espaço dos denominados crimes de perigo abstrato. O perigo nos denominados crimes de perigo abstratonão é elemento do tipo legal, mas tão só motivação do legislador. Se o perigo está fora do tipo e só serviu de ratio justificadora ao legislador para criar uma norma incriminadora, neste caso, não há motivo para tal designação. Se o perigo é motivo de criação de normas incriminadoras, sua análise nada tem a ver com o que antes levou à sua produção. Em rigor, inexiste a noção de perigo quando é aceita uma compreensão inflexível de causalidade naturalística. Se o resultado é produzido, o perigo é por ele consumido e, não ocorrendo a produção do resultado, nunca teria acontecido, sendo o perigo inexistente. Em ambas as situações, a noção seria supérflua e desnecessária.

4. Sendo os tipos de omissão própria configurados de forma similar aos tipos quod unico actu perficitur, donde a consumação é alcançada através da realização de um só ato, inexiste a possibilidade da tentativa, em virtude da necessidade da pluralidade de atos jurídicos relevantes que possam integrar a fase externa do iter. É factível a configuração da tentativa nos tipos de omissão imprópria, onde a presença da conduta diversa da exigida e da esperada confirma um autêntico iter, cuja interrupção pode originar o tipo de tentativa. Os crimes de omissão própria contêm um mandato de ação, não se tomando em conta nos efeitos da tipicidade se esta evitou ou não a lesão ou dano ao bem jurídico protegido, só sendo puníveis quando expressamente tipificados. A tentativa nos tipos denominados omissivos próprios seria inadmissível, visto que em tal categoria não é exigível a superveniência do resultado e o momento consumativo ocorre ipse iure na abstenção do atuar. Nos atos ilícitos próprios de omissão, há três elementos a serem verificados: a) situação que origina o dever; b) não realização da ação ordenada; c) poder de fato de executar a ação ordenada. Os crimes omissivos impróprios ou omissivos por comissão, que produzem resultados naturalísticos, admitem a tentativa.

5. Como a inação voluntária é finalisticamente dirigida a permitir o livre desenvolvimento da força causal, que o omitente não colocou em marcha, não sendo impedida produz o resultado final querido. A norma incrimina a produção do resultado e não a simples omissão, o que não impede ser interrompida por fatores alheios à vontade do omitente. A lei dificilmente tipifica fatos de omissão por comissão (A, devendo ter atenção para com o cego que tem a seu encargo, deixa que o mesmo atravesse a rua, quando vem um carro em velocidade, e vê cortada a sua inação dolosa pelo auxílio de um transeunte que evita o atropelamento, segurando o cego pelo braço). Nos tipos de ação com meio omissivo, teria a mesma postura. Se o salva-vidas A, dolosamente, não acolhe o pedido de socorro de B, marido de sua amante C, que veio a ser salvo por um terceiro, comete homicídio tentado. Os crimes omissivos impróprios são infrações não tipificadas do dever de impedir o resultado de um ilícito comissivo tipificado (a infração ao dever de evitar um resultado). Questiona-se não a causalidade do resultado, mas se o resultado é objetivamente imputável à ação ou à omissão (a relação se situa entre o resultado não evitado e a omissão).

6. A doutrina admite a possibilidade de continuação delitiva entre as formas consumadas ou tentadas, bem como entre tentativas de delitos da mesma espécie. Hungria escreve que é também fora de dúvida que pode existir continuação entre a forma consumada e a forma tentada do crime. No crime continuado, há consumação em sentido estrito sob dois ângulos: a) tratar-se de crime único; b) que o dolo seja único. Isto significa reduzir o crime continuado à unidade de ação, com pluralidade de atos executórios. Se a consumação equivale à perfeita realização de todos os resultados objetivos e subjetivos da figura legal, e cada uma das ações realizadas em forma continuada deve constituir um injusto penal, trata-se de um crime consumado. Existirá consumação em cada uma das ações, devendo-se considerar cometido quando da última ação que o integra. Por sua natureza estrutural não há um momento comissivo, pois decorre de uma pluralidade de ações, cada qual com um momento determinado próprio. Todavia, para abranger as dificuldades processuais em relação à regra da competência (“... Pelo lugar em que se consuma a infração, ou no caso da tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução”) coloca-se o momento comissivo do crime continuado no instante em que se realiza o último ato da cadeia programada. A admissão do crime continuado tentado implica a aceitação do crime continuado como fato único, que só é considerado consumado quando se realizam todas as ações que o integram. Assim, a realização de parte das ações integrantes constituirá a tentativa. A tentativa implica, referida ao crime continuado, a valoração como atos de execução de ações particulares que integram a figura típica, e posiciona a questão sob três ângulos: a) consumação seguida de tentativa (aplica-se a regra do tipo consumado, unificando-se as condutas). É a hipótese em que não há divergência na doutrina (o autor, depois de executar uma ou várias ações criminosas e, em seguida ao mesmo propósito, reitere o fato sem chegar a consegui-lo, haverá, então, continuação entre consumado e tentado); b) tentativas seguidas de crime consumado (ou integram as formas tentadas no último ilícito consumado, havendo um ilícito único, ou não se integram e trata-se de continuação); c) continuação entre tentativas (as violações constituem ou não, per se, ações ou são meros atos integradores da ação). A jurisprudência é pacífica quanto a ser admissível a continuação criminosa entre as formas consumadas e tentadas, como também entre as simplesmente tentadas da mesma espécie.

7. O crime habitual é anterior e concomitante à violação da norma incriminadora, que não se deve confundir com a habitualidade criminosa, que é posterior à violação normativa. Em síntese, há uma série plúrima de atos que unidos configuram o crime habitual, e, quando realizados singularmente, inexiste figura penal, tratando-se de uma figura que intrinsecamente não se constitui em fato físico, mas sim em uma situação que o legislador por política criminal entendeu oportuno equiparar a tal. A reiteração dos atos configura o crime habitual, o qual se consuma, não cabendo falar de início de execução. Em seu conhecido trabalho Il problema giuridico del tentativo, corretamente, Vannini diz que é totalmente inadmissível a tentativa nos crimes habituais, pela ausência de um iter criminis. Na legislação brasileira, encontram-se como principais figuras habituais: a) exploração da prostituição; b) manter casa de prostituição; c) exercício ilegal da medicina, obstetrícia, arte dentária ou farmacêutica; d) exercício ilegal da profissão; e) curandeirismo; f) explorar a credulidade pública. O crime habitual inadmite a possibilidade do fracionamento da execução, razão pela qual é inadmissível a tentativa. Cogita-se de crime único em todas as consequências e efeitos. Aduza-se que a sua punibilidade é contada a partir da última ação da série delitiva. O hábito se caracteriza na persistente conduta ilícita, demonstrada pela reiteração do ato demonstrativo do perfil do autor. Desde Farinaccio bastaria a existência de mais de dois atos, porém outra vertente advoga que não se pode determinar o número de atos para se ter a habitualidade, e outros que a habitualidade com a reincidência. Enfim, a habitualidade é a repetição de atos, para nós mais de três, que só adquire relevo jurídico a posteriori. Trata-se de delito complexo, que deve ser observado diante da leitura normativa.

8. Quanto aos crimes formais, cuja execução se cumpre em um só ato, não significa que não possam admitir a tentativa. Para Manuel Pedro Pimentel, os crimes de mera conduta constituem uma categoria autônoma, fora dos formais, pois nos de mera conduta há uma ofensa presumida, ao passo que nos formais existe um resultado incerto na conduta que se realiza ao término do desdobramento do obrar do autor. Nos tipos formais, há conduta e resultado, e nos de mera conduta a realização ocorre com a simples conduta ou atividade, sendo irrelevante o resultado naturalístico. O tipo formal é tipo de ação e resultado. Assim, nos tipos formais há “dolo de resultado”, enquanto nos tipos de mera conduta só haveria dolo de ação ou omissão. Os crimes de mera conduta são aqueles nos quais a realização da conduta típica apresenta-se como relevante para o Direito Penal, independentemente das consequências de seu caráter material. Integram-se pela maioria dos tipos omissivos próprios e pelos representados por uma única ação do autor, além de traduzirem-se em uma translação física do próprio autor (evasão). Há tentativa inacabada e jamais acabada. O tipo formal pode admitir a tentativa. A inexistência da tentativa nos tipos de consumação antecipada obedece às mesmas razões já expostas em relação aos tipos que se cumprem em um único ato.

9. O crime complexo, que ofende mais de um bem jurídico ao mesmo tempo, é o integrado por duas ou mais situações, cada qual, a principal, constituída de um tipo de injusto (fusão de dois ou mais delitos). É aceitável a configuração do tipo tentado sempre que a intenção do autor seja a comissão instrínseca do tipo complexo. A união de duas figuras legais que autonomamente integram tipos diversos não elimina a possibilidade da presença da tentativa, porque a pluralidade de atos para a constituição do fim ilícito não vem eliminada ante a complexidade do tipo. A tentativa no tipo complexo pode ser concretizada por meios diversos, podendo realizar-se na forma simples ou circunstanciada do tipo. Entende-se por tipo complexo aquele que é integrado por duas ou mais situações que, cada qual ou, pelo menos uma delas, a principal, constitua por sua vez um delito. A matéria é tratada no art. 101 do Código Penal (“Quando a lei considera como elemento ou circunstância do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes...”). O legislador usou o plural “fatos e crimes”, podendo-se, em resumo, afirmar que o crime complexo é uma reunião e fusão de dois ou mais crimes, que não se confunde com os injustos processualmente conexos, vindo com o concurso ideal ou real de tipos. A jurisprudência inclina-se para que a tentativa de tipo complexo se configure com o início da execução do injusto vestibular do todo unitário. O crime complexo não se confunde com os injustos processualmente conexos, nem com o concurso real ou ideal de tipos penais. Sabe-se que é inadmissível a tentativa de concurso de tipos penais quando é factível e frequente a presença de alguma tentativa na cena de uma convergência de tipos (real ou ideal).

10. Nos tipos de resultado cortado, cuja punibilidade depende de que o autor abrigue uma finalidade ulterior, mas não se espera a realização desta para a punição. A consumação é contemporânea ao ato executório independente do resultado obtido. Nos tipos de mera conduta a realização ocorre com a simples conduta, sendo irrelevante o resultado naturalístico. Os tipos podem ser agravados ou atenuados como forma de aparição dependente do tipo básico/independente ou primário/subsidiário, que pode ser expressa ou tácita, em atenção à hierarquia da lei penal. Não é possível a tentativa na hipótese do dolo eventual ou indireto, visto que não há concretude do resultado, somente existe a assunção do risco de ser realizado (culpa consciente). Portanto, a tentativa só se opera na esfera de âmbito do dolo direto. Denomina-se de tentativa branca quando o ato não causa qualquer lesão ao bem jurídico mirado. Por último, constata-se a irrelevância penal do ato, diante da inexpressividade da lesão do bem jurídico, ou de sua ausência, deve-se reconhecer a atipicidade comportamental (bagatela) pela aplicação do princípio da insignificância (STJ, AgRg no REsp 1.591.408/PR, 6ª T., rel. Min. Sebastião Reis Junior, j. 24.5.2016).

11. Na aberratio delicta, que se apresenta como um verdadeiro caso de concurso de tipos, integrado por um tipo a título de culpa correspondente ao resultado não querido, mas produzido; e na aberratio ictus, qualificada a título do tipo produzido e que não sendo variado o título do tipo intentado e havendo incidido o erro exclusivamente no golpe contra pessoa determinada, o resultado originariamente intentado só se mantém na pessoa diversa. Em ambas as hipóteses de erro impróprio, operam casos concretos de verdadeiro concurso ideal, os quais, não obstante, guardam particular tratamento por terem suas bases no erro, integrados com a presença de um crime consumado, a título de culpa, e de um crime tentado, a título de dolo, configurados, com relação a uma só ação em sentido estrito (a. A atira uma pedra, de uma excessiva distância, contra uma vitrina de uma loja. Porém, passa B no exato momento, sendo atingido e sofrendo lesões corporais. A responderá unicamente por um único crime de lesões corporais culposas; b. A atira a pedra contra a vitrina da loja e, quebrando-a, vem a atingir B que estava no seu interior, causando-lhe lesões corporais. A responderá por delito dano em concurso ideal com o de lesões corporais culposas, em razão da norma reitora do art. 74 do Código Penal (quando, por acidente ou erro na execução do delito, sobrevém resultado diverso do pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do concurso ideal). Porém, se A viesse a realizar em forma de tentativa o fim querido e reprovável juridicamente, mas na trajetória operasse um crime consumado não querido, aplicar-se-ia a regra do concurso ideal (A atira uma pequena bomba contra B, que está junto da porta de uma residência. Ao explodir, a bomba atinge este, o qual se salva da morte por fortuna e sofre lesões corporais graves, sendo a casa incendiada. A responderá por tentativa de homicídio e por incêndio culposo, em concurso ideal ex vi da regra do art. 70, Código Penal, resultado diverso do pretendido). Resumindo: os crimes culposos, omissivos próprios, unissubsistentes, preterdolosos e os habituais não admitem tentativa. Gize-se que o art. 5º da Lei nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo) trata de atos preparatórios de terrorismo, que exige a motivação por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, por etnia e religião que demanda interpretação conjunta, sendo que o tipo penal exerce função de garantia. Trata-se de criminalização dos atos preparatórios do delito de terrorismo, o que exige a interpretação sistemática. Decidiu o Superior Tribunal de Justiça que “não se mostra admissível, do ponto de vista hermenêutico, que o delito subsidiário tenha âmbito de aplicação diferente do delito principal” (STJ, HC 537.118/RJ, 6ª T., rel. Min. Sebastião Reis Junior, j. 5.2.2019).

VI - Fundamentação da punibilidade

1. Na discussão em torno do fundamento da punição da tentativa, há duas vertentes: a) para a teoria objetiva, a tentativa é reprovável, porque implica um perigo para o bem jurídico, tendo como consequência a atipicidade da tentativa inidônea, como também de qualquer tentativa em que o bem jurídico concretamente não tenha corrido qualquer risco (A penetra na residência de B e, como os cômodos estavam vazios, não havia qualquer objeto para ser subtraído; daí por tal vertente inexistiria tentativa de furto). Seus postulantes advogam que a pena da tentativa deve ser obrigatoriamente inferior à do delito consumado. Von Liszt sustenta que a relação deve dar-se em duplo sentido: na periculosidade do fato e na periculosidade do autor; b) a teoria subjetiva baseia a punibilidade da tentativa no querer contrário ao direito do autor, o que explica a reprovação penal da tentativa inidônea, conduzindo a uma equiparação das penas ou a uma atenuação facultativa. As teorias objetivas estabelecem o começo da punibilidade no perigo que ocorreu ao bem jurídico; já as teorias subjetivas se fixam na exteriorização da vontade de danificá-lo, ainda que não ocorra perigo; c) a teoria da impressão sustenta que só há punibilidade da tentativa quando o querer contrário ao Direito é dirigido no sentido de abalar a sua vigência na ordem jurídica e o sentimento de segurança jurídica. Trata-se da impressão que o fato possa provocar erga omnes em conexão óbvia com o princípio de prevenção geral. A teoria da impressão ou do prejuízo concreto foi basicamente posta por Von Liszt ao defender que a tentativa não perigosa – absolutamente inidônea – não é tentativa e, consequentemente, não é punível. Fala em “apreciação ex ante” para a qual o magistrado deverá remontar-se ao “momento da execução do ato”, opondo-se frontalmente à “apreciação ex post”, na qual pretenderia determinar a inidoneidade tomando em consideração circunstâncias conhecidas após o ato se ter frustrado. Seu mérito é separar a questão da inidoneidade da causalidade material. Seus antecedentes remotos estão nas obras de Romagnosi e Carmignani, quando o primeiro em sua Genesi sustentava que a tentativa causava um dano injusto que perturbava a segurança a que tem direito a sociedade desfrutar. A teoria apresenta várias lacunas, entre elas punir o “alarma social” de forma vaga e imprecisa, consequentemente captando o fenômeno da tentativa de maneira parcial.

2. A tentativa não pode ter como patamar de sua punibilidade o mero temor infundido eventualmente no sujeito passivo, que, na verdade, de forma concreta, teme por seus bens jurídicos, quer na tentativa ou na consumação. O fundamento da reprovação penal da tentativa deriva da criação do perigo concreto ao bem jurídico tutelado, que perturba a segurança da sociedade. Domina na doutrina a postura subjetivo-objetiva. A diminuição da punibilidade na tentativa encontra razões de índole jurídica, política e de equidade. A tentativa é um quid minus em relação ao tipo consumado, além de não estimular a consumação pela equiparação da pena (caráter inibitório). A legislação brasileira estatui que “salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços”. O fundamento da punibilidade da tentativa reside no desvalor da ação, pois o desvalor do resultado não é alcançado, não é produzido. A doutrina busca seu fundamento em critérios objetivos e subjetivos. Sustenta-se que há casos em que a aproximação máxima do resultado e a real e efetiva gravidade do dano causado justificariam quase a mesma pena do crime consumado. Constituindo-se na teoria do binômio espaço-tempo percorrido, o maior desvalor na medida da pena deve ser fundamentado, na proporção da aproximação da consumação, que é o limite da tentativa. Na Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016, diz o art. 5º: “Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito: Pena - a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade”.

VII – Direito positivo

“Art. 14. Diz-se o crime:

Crime Consumado

I - consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;

Tentativa

II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Pena de Tentativa

Parágrafo único. Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.”

Para a efetivação da tentativa de homicídio é necessário o início da execução, isso significa que, o agente deve ter acionado a arma (no revolver, ter puxado o gatilho) e a mesma estar municiada sem qualquer defeito mecânico para a realização do disparo, o que será apurado através de perícia técnica.

VIII – Consumação

O conceito de consumação é jurídico, dizendo-se que um delito é consumado quando todos os elementos integrantes, segundo o modelo legal, se encontram reunidos no fato realizado. O legislador brasileiro diz que o delito está consumado “quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal”. Através da realização destes elementos constitutivos do modelo legal, reproduz-se totalmente o fato concreto. Em síntese, o fato consumado se caracteriza pela adequação direta e perfeita à figura legal. A consumação configura a completa realização do tipo penal. A regra geral é que não é o momento da consumação formal o mesmo do exaurimento material, sendo frequente a distância entre estes dois instantes, dando lugar a um período em que o crime está consumado, mas ainda não exaurido. O exemplo mais flagrante é no crime continuado em que o exaurimento se separa cronologicamente da consumação. A consumação é a realização do fim planejado através das ferramentas operadas pelo autor. Uma parte da doutrina faz distinção entre o crime consumado e o exaurido (ou esgotado), baseando-se em que há exaurimento quando um crime produz todos os efeitos lesivos que são a consequência de sua violação, sendo, portanto, um período posterior à consumação, pois, nesta, só há a simples realização dos elementos integrativos essenciais do tipo legal. Realmente, não interessa ao Direito que o ilícito produza todos os seus efeitos lesivos que estavam no querer do autor e que não formam parte de sua estrutura, motivo pelo qual deixa de ter relevância tal distinção. Distingue-se a consumação do esgotamento do delito. A importância do esgotamento é relativa. O planejamento e os atos preparatórios podem ser realizados simultaneamente, pois até nos tipos de ímpeto encontra-se um breve momento de preparação (a. se durante uma discussão um dos participantes se exalta e saca um revólver, mas é contido e desarmado pelos debatedores antes de fazer qualquer disparo, o ato é meramente preparatório; b. se A se precipita sobre uma jovem com o intuito de manter uma relação sexual, mas é detido por seus colegas no instante em que se projeta para rasgar as vestes da vítima, a execução também não se iniciou). O exaurimento é irrelevante para a configuração, apenas servindo de indicador para o merecimento da pena.

IX – O caso Kirchner

A motivação da tentativa de homicídio qualificado cometida pelo brasileiro Fernando Montiel, de 35 anos, que confessou perante a juíza argentina Maria Eugenia Catrechedti, que já decretou o sigilo do inquérito, em relação à posse da arma apreendida no local em que apontou para a cabeça da Vice-Presidente da Argentina Cristina Kirchner, mas que negou responder às demais perguntas (ter puxado o gatilho e a motivação da conduta).

Ressalte-se o papel das divergências em uma democracia, sempre respeitados os limites da intolerância. A polarização per se é própria das democracias e quando existem divergências ideológicas ocorre o agravamento de crises institucionais. Todavia, há limites que não podem ser ultrapassados. A divergência como arma política e todos os debates de opiniões opostas devem ser públicos e pacíficos. Na tentativa de homicídio qualificado a Cristina Kirchner deve-se separar o que é decisão pessoal de seu autor e o que é produto da divergência política. Todos os governantes têm o dever de salvaguardar a segurança pública e a paz social. As ideias de ódio são minoritárias e não estão ancoradas nas sociedades brasileira e argentina.

Nos Estados Unidos, registra-se uma polarização acentuada entre trumpistas e progressistas. Com a posse de Biden, a violência aumentou. No quadro brasileiro, apontam-se: a morte da ex-vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, a tentativa de homicídio a faca em Jair Bolsonaro por um doente mental (personalidade delirante), os disparos contra o ex-Presidente Lula, no Paraná, e o homicídio qualificado consumado do petista Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, em julho de 2022. Há um ciclo de violência política.

O brasileiro Fernando Montiel nasceu em São Paulo e mora na Argentina desde 1993. Trabalhava como motorista de aplicativo e possui antecedentes de porte de arma não convencional (faca de 35 centímetros de comprimento). Usava no Instagram, em suas postagens, o nome de “Salim”, e se gabava de ser crítico da família e do governo Kirchner. Nas fotos na internet desataca-se um “sol negro”, no cotovelo, que remete ao ramo ligado ao ocultismo do Partido Nacional Socialista, ligado a Adolf Hitler (1933-1945). O “sol negro” é uma combinação de três símbolos relevantes na ideologia nazista. Recorda-se que Himmler buscava ligações místicas que justificassem a filosofia fascista do regime. O autor da tentativa também possui uma tatuagem, em uma das mãos, de um martelo do Deus nórdico “Thor” – imagem mitológica que foi apropriada por grupos neonazistas e de extrema direita na Europa.

Álvaro Mayrink da Costa

Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Quais são os crimes que não admitem tentativa?

São 07 crimes que não cabe tentativa: Crimes culposos, Crimes habituais, Crimes omissivos próprios, Crimes unissubsistentes, Crimes preterdolosos, Contravenções penais e nos Crimes de atentado.

Não é possível a tentativa nos crimes culposos nem nos omissivos próprios?

Não se admite a tentativa, em regra, nos delitos culposos, unissubsistentes, omissivos próprios, habituais e nas contravenções penais. Considerando que na tentativa o agente não consegue alcançar o resultado pretendido, não é possível a sua caracterização nos crimes culposos (em que o resultado é involuntário).

Quais são crimes próprios?

Crimes próprios ou especiais são aqueles em que o tipo penal exige uma situação de fato ou de direito diferenciada por parte do sujeito ativo. Apenas quem reúne as condições especiais previstas na lei pode praticá-lo. É o caso do peculato (CP, art.

É admissível a coautoria nos crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão?

Tratando-se de crime próprio, não é admissível coautoria, uma vez que os omitentes, possuindo a qualificação jurídica exigida pelo tipo, são autores, mas não coautores. 3. Não há participação por omissão nos delitos omissivos próprios.

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