Permanências e mudanças no imaginário francês sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII) Show Permanences and changes in french imagery about Brazil (XVI to XVIII centuries) Permanencia y cambios en el imaginario francés sobre Brasil (siglos XVI a XVIII) Carmen Licia Palazzo* Centro Universitário de Brasília, UniCeub Endereço para correspondência RESUMO O presente artigo analisa os olhares franceses sobre o Brasil, do século XVI ao XVIII, objetivando detectar permanências e transformações em um estudo que privilegia a longa duração. O enfoque teórico adotado foi o da História Cultural com ênfase no estudo da formação de imagens do Outro. Como premissa básica foi aceito que os cortes cronológicos tradicionais da historiografia não correspondem às mudanças nas mentalidades, que se transformam muito lentamente. Levantou-se então a hipótese de que, nos relatos dos viajantes dos séculos XVI e XVII, dificilmente poder-se-ia encontrar uma forte evidência da chamada Idade Moderna. Durante todo o século XVI e até meados do XVII, os olhares sobre o Brasil estiveram largamente vinculados ao imaginário medieval. Só a partir do século XVIII é que se pode, então, observar uma ruptura com modificações significativas nas mentalidades. Altera-se, pois, a maneira de ver o Outro sob influência da História Natural e da Razão Iluminista, rompendo- se com a visão medieval de mundo, mas, por outro lado, abandonando um rico imaginário que muitas vezes havia sido a chave para melhor captar a diferença. Palavras-chave: Viajantes, Imaginário medieval, Iluminismo, Alteridade. ABSTRACT This article addresses the French views of Brazil from the XVI to XVIII centuries, aiming at detecting permanences and transformations within the context of a study that favors the long duration. The theoretical focus adopted is that of Cultural History, with an emphasis on the study of the formation of images of Otherness. It was taken as a basic premise that the traditional chronological sections of historiography do not correspond to the changes in mentalities, which are very slowly transformed. A hypothesis was then established that in voyagers’ accounts of the XVI and XVII centuries, a strong evidence for the so-called Modern Age could hardly be found. All along the XVI century and until the middle of the XVII century, the views of Brazil were largely tied to the Medieval imaginary. It was only from the XVIII century onwards that a break could be seen, with significant changes in mentalities. The way of looking at Otherness is then changed under the influence of Natural History and the Reason of the Enlightenment, breaking with the Medieval view of world but, on the downside, letting go a rich imagery that had oftentimes been the key to a better understanding of the difference. Keywords: Voyagers, Medieval imagery, Enlightenment, Otherness. RESUMEN Este artículo analiza las visiones francesas sobre Brasil, del siglo XVI al XVIII, con el objetivo de detectar permanencias y transformaciones en un estudio que privilegia la larga duración. El enfoque teórico adoptado fue el de la Historia Cultural con énfasis en el estudio de la formación de imágenes del Otro. Como premisa básica se acepta que los cortes cronológicos tradicionales de la historiografía no corresponden a los cambios en las mentalidades, que se transforman muy lentamente. Se levantó la hipótesis de que, en los relatos de los viajantes de los siglos XVI y XVII, difícilmente se podría encontrar una fuerte evidencia de la llamada Edad Moderna. Durante todo el siglo XVI y hasta mediados del XVII, la visión sobre Brasil estuvo ampliamente vinculada al imaginario medieval. Sólo a partir del siglo XVIII se puede, observar una ruptura con modificaciones significativas en las mentalidades. Se altera, así, la manera de ver el Otro bajo influencia de la Historia Natural y de la Razón Iluminista, rompiendo con la visión medieval de mundo, no en tanto, por otro lado, se abandona un rico imaginario que en muchas oportunidades fue vital para captar mejor la diferencia. Palabras clave: Viajantes, Imaginario medieval, Iluminismo, Alteridad. Analisar os de relatos de viajantes franceses sobre o Brasil, abordados na longa duração pode fornecer informações importantes sobre olhares que foram se transformando, mas nem sempre de acordo com os cortes cronológicos tradicionais que dividem a História em Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Afirmar que os viajantes do século XVI e das primeiras décadas do século XVII já traziam em sua bagagem cultural as novas imagens que estariam sendo construídas pelo Renascimento é desconsiderar a força da permanência de mitos e maravilhas do período medieval e sua longa presença nas mentalidades européias. Trabalhamos, pois, com o questionamento da afirmação de que o século XVI e as chamadas Grandes Navegações se constituem no marco fundador da modernidade. Jacques Le Goff está entre os que contestam firmemente a noção de ruptura renascentista1, ao afirmar que
Os relatos de viajantes dos séculos XVI e XVII se constituem em fonte privilegiada para o estudo das permanências do imaginário medieval em pleno período denominado moderno. Mitos e maravilhas são parte integrante da mentalidade daqueles que partem, sem dúvida fascinados pelas possibilidades de riquezas e de conquistas, mas também influenciados por antigas lendas e por obras como as de Jean de Mandeville e Marco Polo, entre outras. Pela possibilidade, enfim, do encontro com o fantástico. A Europa, durante grande parte da Idade Média, produziu um significativo conjunto de relatos de viagens, tanto reais quanto imaginários. Os deslocamentos freqüentes associados a peregrinações, cruzadas e comércio marcaram as mentalidades e resultaram em um corpus importante de descrições do Outro. Fundação de santuários à beira-mar, descendência lendária de certas famílias que se pretendiam herdeiras de casamentos entre cavaleiros e mulheres--sereias, canções de trovadores galegos atribuindo sentidos simbólicos ao oceano, cultura de navegação transmitida e intercambiada entre moçárabes, genoveses e catalães2, todo esse contexto se imbricava num mundo para o qual o movimento e o fazer-se ao mar era uma realidade. O imaginário europeu se abastecia também de relatos sobre a Rota da Seda, que mergulhava suas raízes na Antigüidade, mas cujo auge havia transcorrido durante o período medieval, quando multiplicaram-se não apenas o comércio mas também as lendas e os contos fantásticos3. Um pouco mais tarde, quando os navegantes avançam pelo Atlântico para contornar a África, estarão presentes todos os componentes de um imaginário complexo que associa a viagem à aventura, aos lucros mas também ao maravilhoso. Antonio Carlos Diegues, analisando o simbólico na psicologia e na antropologia e referindo-se, entre outros, a Jung, Chevalier e Gheerbrant, lembra que existe uma ligação entre as viagens dos heróis e os perigos a que eles estão expostos, perigos que são simbolizados “pelos monstros que surgem do fundo [do mar]” (DIEGUES, 1998, p. 25). O oceano era o grande desafio e também o mais desconhecido. O Atlântico foi enfrentado pela primeira vez não pelos homens da modernidade mas por aqueles que, no século XV, traziam consigo os mitos e as utopias medievais.4 Não há dúvida de que foram muitos os fatores econômicos e políticos que levaram os europeus às chamadas Grandes Navegações. No entanto, uma parte significativa do entusiasmo com o qual os marinheiros lançavam-se à aventura pode ser explicada pela busca do fantástico, incluindo o mítico País de Cocanha e as tão desejadas terras repletas de maravilhas e de animais exóticos do Grande Khan, descritas por Marco Pólo (1982) no século XIII. Vasco da Gama, quando partiu pela segunda vez para a Índia, em 1502, levou como leitura uma tradução portuguesa do livro de Polo.5 Gomes Eanes de Zurara (1978), cronista da Corte portuguesa, deixou o registro de que, em 1442, D. Henrique de Coimbra solicitou informações a seus navegantes acerca das terras do Preste João, reino mítico e cristão que se acreditava existir, primeiro no Oriente e depois, a partir do século XV, na África.6 Deslocavam-se, assim, as coordenadas geográficas do imaginário, mas não se extinguiam as buscas que confundiam o real e o fantástico. No período que se convencionou denominar Idade Moderna estavam presentes, portanto, comportamentos e idéias que se constituíam numa prolongação do mundo medieval. Os animais descritos nos bestiários povoavam a imaginação da Cristandade, muito presentes nas esculturas das grandes catedrais mas também evocados nos textos dos viajantes. Nossa pesquisa aponta, assim, para uma ruptura nas mentalidades somente a partir do século XVIII, com o surgimento da História Natural de Buffon e a afirmação da razão iluminista. A análise dos relatos de viajantes franceses que estiveram no Brasil no decorrer daqueles três séculos bem como a dos textos do naturalista Buffon permite-nos desenvolver com maior detalhe toda essa problemática. André Thevet e a França Antártica Desde o início do século XVI os franceses interessaram-se pela costa brasileira, e foram várias as tentativas de aproximação e de contato com os indígenas7 visando principalmente a obtenção do pau-brasil, matéria-prima importante para o tingimento na indústria têxtil de Ruão. Em 1555, porém, esse interesse tomou uma forma mais organizada pela expedição de Nicolau Durand de Villegagnon, que fundou a França Antártica. A aventura foi breve, mas dela se originaram duas obras que marcaram profundamente o imaginário europeu: Les Singularitez de la France Antarctique, autrement nommée Amerique & de plusieurs terres & isles decouvertes, de André Thevet, publicada pela primeira vez em 1557, e a Histoire d’un voyage fait en la terre du Bresil, autrement dite de l’Amerique, de Jean de Léry, cuja primeira edição data de 1558.8 O franciscano André Thevet demonstrou sempre um grande interesse pelas viagens. Sua qualificação em termos de conhecimentos geográficos e sua curiosidade por terras distantes, associadas a bons relacionamentos no ambiente clerical dominante, foram elementos que, conjugados, permitiram que integrasse a expedição de Villegagnon na qualidade de capelão. Mais adiante, de regresso à França, foi nomeado cosmógrafo da Corte dos Valois. O Brasil aparece, na obra de Thevet, de forma significativa não apenas em Singularidades [...] mas também na Cosmographie Universelle, editada pela primeira vez em 1575 e nos Vrais Pourtraicts, de 1584. A parte inicial de Singularidades [...] descreve todo o caminho percorrido pela expedição de Villegagnon, incluindo diversos comentários sobre a África. Thevet não titubeia em acrescentar dragões aos animais que enumera como sendo encontrados na altura da Mauritânia.
Não transparece, portanto, nenhuma dúvida com relação à existência de animais míticos que passaram à literatura e até mesmo a certas manifestações religiosas, extrapolando o período medieval. Thevet inicia sua descrição do Brasil com o desembarque em Cabo Frio, já então deslumbrado com a fartura. Sobre os peixes, escreve que os “bargos e os mugens são realmente tantos que, quando estive no Cabo Frio, vi um selvagem pescar mais de mil delles, com um laço só de rede” (THEVET, 1944, p.157). O século XVI trazia em seu bojo uma forte herança da mentalidade medieval, que acreditava ser possível, algum dia, encontrar o País de Cocanha, cuja principal característica era a fartura da alimentação obtida na total ociosidade. Cantado em versos na tradição oral da Idade Média, o mito da Cocanha se difunde muito além do século XIII, época provável de seu primeiro registro escrito. Na França, ele foi amplamente divulgado também nos séculos XVI e XVII, conforme esclarece Franco Jr. (1992, p. 46), lembrando que naquele país chegaram a ser conhecidas doze variantes em relação ao conteúdo inicial do século XIII. Le Goff (1994, p. 51) destaca que esse mito se constitui numa criação totalmente característica da Idade Média e representa o “mundo às avessas”, “um mundo ao contrário”, no qual será possível compensar as carências da realidade. A busca da abundância, o sonho da fartura e o desejo de uma vida menos trabalhosa faziam parte também da bagagem daqueles que partiam para o Novo Mundo, na esperança de encontrar um lugar no qual os homens estivessem livres da dura labuta nos campos, atividade essencial à sobrevivência dos europeus. Thevet, seguindo com a expedição de Villegagnon do Cabo Frio até a baía de Guanabara, continua maravilhado com o que vê: “Quanto às suas terras, é a America fertilissima em arvores de excellentes fructos. Produzem os campos sem lavoura, nem semeaduras” (THEVET, 1944, p.175). Semelhante, pois, ao fabliau da Cocanha, que revela um lugar no qual:
Quanto ao índio de Thevet, ele também parecia viver em Cocanha, pois atirando uma só vez a rede, havia, conforme o relato, pescado mais de mil bargos! O olhar do franciscano sobre a fauna brasileira reflete não apenas a admiração pela quantidade e diversidade de animais desconhecidos para os europeus mas também a possibilidade de apresentar a seus leitores, de modo fantástico, o haüt, o bichopreguiça, que sobreviveria alimentando-se apenas de vento:
Em seguida, tenta confirmar que efetivamente o haüt não precisava se alimentar e, tendo sido presenteado com um deles, observa:
Procurando, ainda, dar total credibilidade à sua longa e detalhada descrição do bicho-preguiça, volta ao assunto e conclui comparando- o aos camaleões que viu na Turquia por ocasião de uma viagem ao Oriente:
Observa-se a marca do fantástico e do diferente, que se enquadra na lógica do século XVI, quando ainda é forte a presença do imaginário medieval. O texto dá grande destaque ao maravilhoso, descrevendo a possibilidade de o bicho-preguiça viver apenas de ar. Seres como os dragões ou mesmo como o haüt, que segundo a descrição irreal de Thevet viveria de vento, não se constituíam em algo totalmente absurdo para uma Europa que tinha na memória os estranhos animais que povoavam um vasto corpus de inúmeros bestiários.10 Na Cosmographie Universelle, o Brasil ocupa também um lugar privilegiado e continua presente a mesma ênfase no maravilhoso enraizado na mentalidade medieval. Não concordamos com a afirmação de Lestringant (1991, p. 53) na qual o autor, analisando a obra de Thevet, diz que, ao escolher o paradigma cosmográfico, o franciscano estaria dando as costas ao período medieval, recuperando um modelo da Antigüidade renovado pelo Renascimento. Em nosso entendimento, uma leitura detalhada de André Thevet deixa bem evidente que não há, de modo algum, rompimento com o universo mental da Idade Média. O próprio Lestringant, não sem certa contradição com o que ele próprio havia afirmado, aponta, no mesmo livro, inúmeros traços do maravilhoso presentes tanto nas Singularidades […] quanto na Cosmographie Universelle. E, no que diz respeito a uma efetiva filiação de Thevet a autores da Antigüidade, algumas vezes citados em seus relatos, é ainda Lestringant quem alerta para a fragilidade dessa base, já que o franciscano demonstrava um “conhecimento superficial” dos Antigos, lendo-os “através de compilações da Antigüidade tardia, de Pomponio Mela a Solino” (LESTRINGANT, 1991, p. 27). Procurar o apoio e a justificativa de certas afirmações por meio do recurso da citação ou da simples referência à Bíblia e aos clássicos da Antigüidade é, sem dúvida, um hábito freqüente nos escritos medievais e muito presente nos textos de Thevet. Tanto as Singularidades […] quanto a Cosmographie Universelle apresentam inúmeras passagens nas quais o exemplo bíblico ou os autores romanos atuam como um reforço importante aos argumentos do viajante franciscano. Em nenhum momento, porém, isso representa uma ruptura importante em relação ao universo mental dos séculos anteriores que pudesse indicar uma recuperação renascentista dos antigos. Jean de Léry: o olhar de um huguenote A França Antártica, administrada com mão de ferro por Villegagnon, foi durante um pequeno espaço de tempo um local privilegiado para a convivência entre católicos e protestantes. Embora cavaleiro de Malta, o vice-almirante da Bretanha apresentava-se inicialmente tolerante com os huguenotes, chegando a manter relações de amizade com Calvino, que lhe forneceria um contingente de colonos para povoar a terra conquistada. Jean de Léry viajou para o Brasil como integrante de um grupo enviado justamente pelo líder genebrino em 1558. No decorrer daquele ano, porém, as disputas entre católicos e protestantes na França Antártica tornaram-se muito violentas, culminando com a impossibilidade de uma convivência pacífica, o que levou Léry e seus companheiros a deixarem a ilha passando a viver junto aos indígenas, durante dois meses, até a chegada de um navio que os conduziu de volta à Europa11. Ao contrário de Thevet, que publicou as Singularidades […] em 1557 – logo após, portanto, o seu retorno da França Antártica –, a Viagem à Terra do Brasil de Léry só veio à luz em 1578, já que seu autor, não sendo cartógrafo nem cosmógrafo, estudando teologia e preparando- se para se tornar pastor, não tinha como prioridade editar o seu relato. Ao que tudo indica, foram o acirramento das lutas entre protestantes e católicos na Europa e também sua indignação com diversos comentários feitos por Thevet contra os huguenotes, principalmente na Cosmographie Universelle (publicada em 1575), que levam Léry, após várias peripécias de perda do manuscrito iniciado em 1563, a reescrevê-lo e publicá-lo pela primeira vez em 1577, dezenove anos após o seu retorno do Brasil. As referências tanto de Thevet quanto de Léry sobre a longevidade dos índios brasileiros evocam o que Hilário Franco Jr., ao tratar do fabliau da Cocanha, chama de “imaginário da perfeição social” (FRANCO JR., 1998, p. 21). Para Thevet, “dispõem os índios das mais variadas fructas, proporcionadas pela natureza. Vivem longos annos, sãos e dispostos” (THEVET, 1994, p.188). Para Léry, ainda mais afirmativamente com relação a uma quase impossível duração de vida, os índios: “alcançam a idade cem ou cento e vinte anos (…) (todos eles bebendo verdadeiramente à fonte da Juventude)” (LÉRY, 1975, p. 95). Referindo-se à fauna marinha, o viajante huguenote não endossava totalmente, mas não descartava a possibilidade da existência de monstros com forma humana. Relatando o que lhe haviam contado os índios, descreve com detalhes:
O texto demonstra com bastante clareza a presença do maravilhoso também no discurso de um protestante. Embora os calvinistas criticassem a falta de sobriedade nas crenças dos católicos, não seria a condição de reformado que excluiria Léry da mentalidade de sua época, fortemente impregnada pelo fantástico. A visão do Brasil que deixou registrada em seus relatos foi sem dúvida nenhuma influenciada pelas informações de Thevet. Sua descrição do bichopreguiça está muito próxima da que se encontra nas páginas de Singularidades […] e da Cosmographie Universelle: “Mas (coisa que parecerá realmente fabulosa) (…) que jamais homem, nem no campo, nem em casa, tenha visto este animal comer: tanto que alguns estimam que ele viva de vento” (LÉRY, 1975, p. 146). Léry também participa da mentalidade da época, que aceita o fantástico e espera encontrá-lo nas novas terras. Sua descrição da anta refere-se a um animal estranho, uma “semi-vaca” ou “semiasno”, o qual:
Na iconografia do relato de Léry encontra-se, desde a primeira edição, de 1578, uma gravura (LÉRY, 1975, p. 235) na qual se distinguem diversas representações do fantástico, tais como dragões, demônios atacando os seres humanos e, bem caracterizando as novas terras, um enorme bicho-preguiça. Até mesmo os peixes voadores assumem proporções irreais em relação aos demais elementos da cena (ver figura que segue). Mitos, lendas e relatos bíblicos podiam ser vistos em inúmeras obras da arquitetura de toda a Europa e foram recuperados também pelos relatos de viajantes. Se Thevet afirmava que existiam dragões na África, Léry, por seu lado, descrevia um lagarto brasileiro como um animal monstruoso, muito próximo às imagens do fantástico:
A crença em animais aparentados a dragões dos relatos míticos, em lagartos monstruosos e em serpentes com poderes estranhos estava ainda muito presente no período quinhentista. Le Goff (1994) refere-se a um “corpus de mirabilia”, apresentando um texto de Gervásio de Tilbury, do início do século XIII,12 e deixando claro ainda que existe, na Idade Média, uma certa naturalidade na maneira de aceitar o imaginário. Poderíamos dizer, então, com relação ao século XVI, que os relatos circulavam e os enredos estavam de certa forma inseridos nas ações do dia-a-dia. Seres estranhos surgiam sem alarde, eram aceitos e viviam integrados ao mundo real. O fabuloso e o cotidiano não estavam separados de forma intransponível. Claude d’Abbeville e Yves d’Evreux, missionários no Maranhão A colonização efetiva das capitanias do Nordeste do Brasil levada a efeito pelos portugueses – especialmente nos territórios que correspondem aos atuais estados da Paraíba, Ceará e Maranhão – foi lenta e difícil, enfrentando a reação dos indígenas que se insurgiam contra os apresamentos que os destinavam ao trabalho nos engenhos de açúcar. A presença de comerciantes franceses na região reforçava a idéia de que os inimigos eram os portugueses, que agiam com violência, e os amigos, aqueles que vinham da França para a extração de produtos naturais e não de escravos. Apesar do insucesso da França Antártica, os franceses não abandonaram as incursões pela costa brasileira, e a instalação da França Equinocial representou uma tentativa de juntar em uma mesma empresa três componentes distintos que estavam presentes no início do século XVII: os interesses comerciais de particulares, as missões de catequese e o desejo de prestígio da Coroa, que desde o século anterior pretendia disputar com os ibéricos o testamento de Adão.13 A expedição de colonização chefiada por Daniel de la Touche, Senhor de La Ravardière, e por François de Rasilly, Senhor de Aumelles, no Maranhão durou apenas três anos, de meados de 1612 a novembro de 1615, quando o forte de São Luís foi entregue pelos franceses aos portugueses. La Ravardière já havia participado de uma viagem ao litoral da Guiana e da Amazônia, em 1604, motivado pela descrição das terras do Maranhão feita principalmente por De Vaux, que havia permanecido algum tempo junto aos índios. Após essa viagem, continuou mantendo seu interesse pela região e explorou-a a pedido de Henrique IV novamente em 160714. O rei, no entanto, foi assassinado antes que se concretizasse a colonização, sendo, pois, necessário buscar o apoio da regente Maria de Médicis, que não demonstrou grande interesse pela aventura, levando La Ravardière a procurar outras personalidades que se constituíssem em fontes de financiamento e de incentivo, entre elas o barão normando Sancy e François de Rasilly. Os três afinal encabeçaram o projeto e partiram juntos para o Brasil no ano de 1612, desta vez já organizados em torno do objetivo de estabelecer a colônia francesa. A expedição contava também com a presença de outros nobres e de frades capuchinhos que se encarregariam de empreender a conversão dos indígenas. Os capuchinhos, ordem pertencente aos frades menores franciscanos, surgem no século XVI, contemporaneamente aos jesuítas, e, como eles, entregam-se com grande zelo à catequese. Imbuídos também do espírito da Contra-Reforma que dominava o catolicismo europeu, eram veementes em suas pregações e rapidamente ganhavam terreno ampliando o número de conventos e de adeptos. A estada de Claude d’Abbeville no Brasil foi de aproximadamente quatro meses, entre a segunda metade e o final de 1612. Embora curta, deu origem a um relato muito detalhado da região maranhense onde se haviam instalado os franceses. É bastante provável que Abbeville tenha utilizado informações recolhidas com intérpretes que já viviam há mais tempo entre os índios, o que era comum na época. O texto do capuchinho deixa muito clara sua condição de missionário, com inúmeros exempla que ilustram, do mesmo modo como havia sido hábito na Idade Média, os riscos para aqueles que viessem a cair em pecado. Jacques Le Goff (1994, p. 123), que estudou detalhadamente o uso dos exempla, define-os como sendo narrativas breves, muito em voga durante o período medieval, semelhantes a pequenos contos ou fábulas, mas de conteúdo persuasivo, cujo caráter de “exortação” visava a convencer os ouvintes com uma lição salutar. Para que fosse efetivo como técnica de persuasão, o episódio narrado deveria ser plausível e ter ocorrido no tempo recente, próximo ao narrador. Abbeville, em seu relato, faz uso dos exempla com a habilidade da sua condição de pregador, o que é bastante evidente na passagem que segue e que se refere a um pequeno índio de quatro anos que agonizava:
Encontram-se presentes no texto todos os elementos de um exemplum medieval: a narração breve e persuasiva, o tempo recente e a experiência do narrador – no caso, a experiência visual, já que ele próprio presenciou o fato. No relato do missionário francês, as “lições exemplares” referem-se em geral a situações que ocorrem em virtude da conversão ou da obediência dos indígenas, que são recompensados de alguma forma, material ou espiritualmente. As imagens fortes – fossem elas verbais ou iconográficas – faziam parte da bagagem dos missionários e eram especialmente adotadas pelos frades pregadores das ordens menores. A veemência das pregações franciscanas era conhecida desde a Idade Média, e os capuchinhos, um ramo mais recente dessa ordem, se destacaram ao utilizar recursos de grande apelo popular. Suas missões, quando realizadas na Europa, tinham como objetivo conter a heresia calvinista e trazer de volta ao rebanho católico as ovelhas desgarradas que haviam aderido à Igreja Reformada. Os frades mendicantes combatiam as heresias principalmente por meio da catequese, mas, embora a estendessem aos índios, eles não se enquadravam na definição de heréticos, já que eram considerados “pecadores” pelo desconhecimento da “verdadeira fé” e não por “erro deliberado”. São fortes também as imagens evocadas quando Abbeville se refere aos peixes voadores que observou na altura dos trópicos, durante a viagem de travessia da França ao Maranhão:
No relato, a comparação dos peixes – que saltam para fora do mar e nele voltam a mergulhar – com a alma do homem mundano, que mergulha ele também nos vícios, é deliberadamente exagerada. O que se buscava, na época, com esse tipo de discurso era reforçar os ensinamentos da Igreja, fixando uma imagem forte e assustadora, mas, sobretudo, uma imagem verbal que pudesse ser facilmente associada a um cenário, à evocação de uma iconografia que tivesse caráter pedagógico, como ocorria em tantos casos na arte da Idade Média. No entanto Abbeville, assim como Thevet e Léry, não condena os comportamentos que desaprova nos índios como sendo resultado de vícios deliberados e intrínsecos a eles próprios. As críticas estão sempre ancoradas em descrições de tentações do demônio, e, comparativamente com os europeus, há certa valorização dos habitantes do Brasil.
Se, por um lado, a importância da atividade missionária, da conversão ao catolicismo, está muito presente em todo o relato de Claude d’Abbeville, por outro a Europa como modelo civilizatório e paradigma de comportamento racional não é evidente para o frade capuchinho nem mesmo para André Thevet ou Jean de Léry. Yves d’Evreux, um missionário capuchinho que foi companheiro de Abbeville, esteve também no Maranhão. Sua estada durou dois anos, entre 1612 e 1614. Elaborou um relato bastante revelador do engajamento na catequese, porém, sob diversos aspectos, mais realista, deixando bastante clara sua intenção de incentivar a empresa colonizadora. Poderíamos dizer, portanto, que já se tratava de um relato de transição, mais voltado para interesses concretos e menos tributário fantástico. Mas, acompanhando o fervor missionário, a presença de Satanás também é forte em sua obra. Descrevendo as atividades de um “feiticeiro” indígena que organizava procissões aspergindo os participantes com ramos de palmeiras molhadas, o frade alerta para:
De acordo com Delumeau (1989, p. 239), a Europa do Renascimento herdou da Idade Média “conceitos e imagens demoníacos” que se difundiram largamente no período moderno. Delumeau, aliás, contesta a visão otimista que Jacob Buckhardt tem do Renascimento, lembrando, ainda, que o início da Modernidade conviveu com a violência espalhada por toda a Europa e com o medo de Satã, “um Satã todo-poderoso” (1989, p. 259). Imerso nessa mesma mentalidade, o capuchinho d’Evreux insiste no que chama de sinais evidentes do reino do diabo no Maranhão:
Mas é importante salientar que, no que diz respeito à imagem das terras do Maranhão, Yves d’Evreux descreve a natureza e os índios com bastante realismo e, sem chegar a grandes manifestações acerca de qualidades paradisíacas da região, afirma que:
Mas, diferentemente de Thevet e Léry, ironiza diretamente o mito da Cocanha que havia estado tão presente nos relatos do século XVI.
E conclui essas considerações de forma muito objetiva: “E eu não lhe aconselharia a ir a essa região coberto por estas fantasias, pois ele se arrependeria” (EVREUX, 1985, p. 188). O capítulo intitulado “Instruction pour ceux qui nouvellement vont aux Indes” é um exemplo de pragmatismo, contendo indicações preciosas, assim introduzidas:
O Yves d’Evreux produz um relato que, de certa forma, anuncia uma transição entre a mentalidade marcadamente medieval e aquela que começa a permear o imaginário europeu a partir de novas influências, originadas de transformações políticas, econômicas e culturais do período moderno. A história natural e a razão iluminista nas novas visões do outro O século XVIII é, na Europa, um período de políticas externas agressivas e de afirmação dos Estados nacionais. O expansionismo colonial setecentista, embora diferente nos seus métodos do que viria a caracterizar o imperialismo do período seguinte, nem por isso era menos efetivo do que o seu sucessor. A revolução científica, normalmente datada do século XVII, não se deu de modo linear e não atingiu rapidamente toda a Europa. O desenvolvimento da astronomia e a explicação matemática do universo foram avanços que se tornaram mais conhecidos apenas a partir das últimas décadas do seiscentos e, com maior amplitude, no decorrer do século XVIII.15 As transformações administrativas e políticas que ocorrem no século XVIII vão alterar também o sentido das viagens e, com as mudanças de ordem econômica e social, compõem um novo quadro mental, que modificará, por sua vez, as maneiras de ver o Outro. As potências colonizadoras passavam a lançar um olhar pragmático sobre os territórios do além-mar. No Brasil, a descoberta de ouro acendia um novo interesse e, ainda que a França não pretendesse mais se lançar à conquista territorial direta, nem por isso deixava de se informar sobre as possibilidades de riqueza que estavam se abrindo. Jean-François Labourdette, analisando as instruções da Coroa francesa a seus embaixadores em Portugal no século XVIII, destaca que era desejo da França usufruir de vantagens no comércio com o Brasil e cita uma dessas instruções, que justamente se referia às novas perspectivas advindas dos sucessos da mineração:
Quando Carelli (1993, p. 39) refere-se ao fato de que, no século XVIII, o Brasil já não se faz presente com a mesma força do passado no imaginário francês, ele aponta para a tradicional explicação de que Portugal havia fechado sua colônia a toda e qualquer presença estrangeira a não ser a da Inglaterra, o que limitaria bastante as possíveis incursões francesas, ainda que não visassem à conquista. Muito embora essa interpretação possa ter fundamento, é importante também destacar que o desinteresse francês possuía razões próprias e que o Brasil não se apresentava como o destino mais cobiçado num século no qual, além da conquista colonial, o intercâmbio científico era um dos motivos importantes para as viagens. Nesse contexto, o Oriente, e em especial a China, se constituía num objetivo prioritário em termos de comércio altamente lucrativo e de intercâmbio entre saberes. Sobre uma expedição que se destinava ao reino do Sião e que enviava cientistas jesuítas também à Indochina e à China, escreveu um de seus integrantes, o padre Tachard, que o motivo da viagem, no que dizia respeito ao império chinês, era de “obter todas as observações de astronomia e todos os conhecimentos de artes e de ciências desta nação” (TACHARD citado por FROSTIN, 1983, p. 44) e também de: “fazer a ligação de uma espécie de comércio, em favor das ciências, entre os dois mais poderosos soberanos do mundo e os dois maiores protetores das ciências” (idem). No caso, os dois soberanos referidos eram Luís XIV e o imperador K’ang-Hsi (Kangxi), da China. Com relação ao programa da viagem, segue Tachard escrevendo que os cientistas da Academia:
É visível a abertura de novas possibilidades na Ásia, com relação a benefícios tanto de ordem econômica quanto de novas aquisições no campo da ciência. O Brasil tornava-se assim bem menos atraente para a Coroa francesa. As perspectivas de intercâmbio científico no século XVIII com a colônia portuguesa eram quase nulas, o tempo das maravilhas e do interesse pelo fantástico já havia ficado para trás e, no que dizia respeito a importações e exportações, as melhores perspectivas para a França estavam no Oriente.16 Evidentemente, o comércio não só com o Brasil mas também com a América hispânica continuava a existir e não era desprezível. No entanto, outras prioridades e mudanças significativas de mentalidade eclipsavam, de certa forma, o Novo Mundo. Imagens que haviam sido construídas a partir do deslumbramento com a exuberância da floresta e com a fauna brasileira, tão presente nos relatos de viajantes franceses dos séculos XVI e XVII, cediam espaço, no século XVIII, aos comentários críticos de naturalistas, como Buffon, que insistia sobre a debilidade da natureza americana. Buffon foi, sem dúvida, ao lado do sueco Lineu, a personificação de uma nova maneira de olhar a natureza e o próprio homem nela integrado. A História Natural despontava como ciência autônoma e encontrava apoio não apenas junto à restrita elite intelectual mas também aos segmentos não necessariamente cultos de grande parte da burguesia setecentista e da nobreza. Muitos se apressavam em conhecer, ainda que de modo imperfeito, os fundamentos de saberes novos por meio das atraentes publicações, que alcançavam grande sucesso.17 Além dos livros, uma verdadeira moda de coleções de curiosidades se apoderava da Europa, e, na França, os chamados Cabinets de Curiosités difundiam-se rapidamente. Crescia também o interesse pelos jardins botânicos. O Jardin du Roy, cujo superintendente era, desde 1739, o próprio Buffon, era aberto para visitação pública todas as terças e quintas-feiras, atraindo grande número de pessoas.18 Colecionar animais empalhados, plantas vivas ou secas e objetos oriundos de localidades distantes eram atividades características do século XVIII, uma época que valorizava o conhecimento científico. Buffon influenciou largamente o olhar de seus contemporâneos sobre as terras e os habitantes do Brasil, já que, com sua grande autoridade de cientista muito conceituado, membro da Academia de Ciências e responsável pelo Jardin du Roy, escreveu:
O texto do naturalista veiculava, assim, uma imagem que tinha sua credibilidade assegurada pela posição de destaque do autor – destaque conferido sobretudo pelas importantes funções que exercia. Evidentemente, a grande riqueza da Histoire Naturelle não se resume aos comentários sobre a América, mas eles devem ser destacados na análise da visão francesa sobre o Brasil, já que representavam um discurso que se apoiava na autoridade de um cientista cuja obra teve larga repercussão na Europa. Suas considerações mais gerais sobre a natureza também sinalizam uma transformação nos olhares, que nos setecentos deixam de admirar a floresta espessa e úmida como havia sido o caso em épocas anteriores:
Árvores antigas e a natureza bruta, não-cultivada, passavam a ser motivo de lamentação. A mudança de paradigma, que surge com a revolução científica, mas que só se difunde efetivamente a partir do Iluminismo,19 traz em seu cerne uma transformação importante no imaginário francês sobre a natureza. As obras de História Natural e os assuntos ligados à Biologia tornaram-se de interesse público. Os jardins botânicos e os Gabinetes de Curiosidades eram visitados não apenas por especialistas, mas pela população em geral, o que contribuía para difundir, se não conhecimentos mais profundos (que continuavam a ser privilégio de uma reduzida elite), ao menos as versões mais acessíveis que estendiam a racionalidade ao mundo natural. Se, no decorrer dos séculos XVI e XVII, o Brasil havia ocupado um largo espaço no imaginário francês como repositório de mitos e maravilhas, no século XVIII a demanda por produtos de luxo, o interesse por uma literatura que fazia referência a cenários de jardins e palácios distantes e a curiosidade científica estimulavam outros contatos e viagens ao Extremo Oriente, mais proveitosas do que as que conduziam à colônia portuguesa. Foram principalmente os jesuítas os grandes responsáveis pela veiculação de diversas imagens que transmitiam a beleza e o refinamento da arte e da sociedade da China no século XVIII. Sua presença foi bem aceita pelos imperadores chineses, já que os sacerdotes se instalavam muitas vezes na Corte, prestando serviços diversos, entre eles os de astrônomos, geógrafos, arquitetos, médicos e até mesmo pintores.20 As ilustrações que realizaram e os relatos que escreveram foram também fundamentais para a divulgação da cultura chinesa no imaginário da Europa setecentista. O jesuíta francês Jean-Denis Attiret escrevia, em meados do século XVIII, sobre o magnífico Palácio de Verão do imperador, em Pequim:
Esse palácio e seus fabulosos jardins foram objeto de grande interesse na Europa do século XVIII, quando proliferaram, nas decorações da nobreza e também da burguesia, as chamadas chinoiseries. O luxo do extremo Oriente e a organizada e estratificada sociedade chinesa atendiam perfeitamente aos desejos de uma França setecentista, e a demanda de exotismo era satisfeita pelos negociantes com importações de produtos sofisticados, de alto luxo. O Oriente Médio também despontava como uma área de interesse, e os contatos estabelecidos no século XVIII viriam alimentar o chamado “orientalismo” do século XIX. O mundo islâmico mantinha relações importantes com os franceses e também atraía o interesse por sua cultura. Entre 1704 e 1717, foram publicados 12 volumes das Mil e uma Noites, traduzidas do árabe por Antoine Galland21. A obra se constitui em um conjunto de contos oriundos das tradições populares não apenas árabes mas também indianas e persas e, no decorrer do século XVIII, foi grandemente difundida na Europa em sua tradução francesa. Além do interesse econômico, sem dúvida importante, foi também toda uma cultura oriental que se fez presente exercendo fascínio entre os europeus. Por outro lado, as viagens científicas passam a ser uma constante e encontram largo apoio na monarquia. Observação e experiência são as duas palavras-chaves para definir a ciência do século XVIII, e viajantes, como La Condamine, Bougainville e Lapérouse, partem justamente com objetivos que se enquadram perfeitamente nesse contexto, visando a alargar conhecimentos que pudessem trazer para a Coroa francesa tanto o prestígio do saber quanto um pretendido domínio do Pacífico. O objetivo central da expedição de La Condamine, que partiu em 1735, era o de obter a medida do meridiano na altura do Equador. Outras aquisições científicas integraram também a bagagem de retorno da longuíssima viagem, que durou 10 anos, consagrando-a como um real sucesso em sua época. Só em 1743, após terem sido realizadas as tarefas para as quais a equipe de cientistas havia sido enviada, é que La Condamine decide-se pela descida do rio Amazonas, de Jaén de Bracamoros até Belém do Pará, viajando durante um ano pela Amazônia brasileira e seguindo para Caiena em 1744.22 Sem dúvida um típico viajante ilustrado escreve com cuidado e faz referências bem fundamentadas sobre tudo o que vê. La Condamine relata com muita sobriedade o que ouviu falar sobre as mulheres amazonas, dando crédito, mas de forma discreta, ao que lhe contaram e ressaltando que se tratava de informações recebidas e não de fatos por ele mesmo testemunhados.
Comparando-se esse texto de La Condamine com o de André Thevet, do século XVI, também sobre as amazonas, é possível observar a grande distância entre o universo mental das duas épocas e o espaço para o fantástico no relato do franciscano quinhentista. Thevet escreveu:
La Condamine, porém, não se interessa por referências que remetem ao mito e encerra o capítulo com um comentário que é bastante característico de um texto iluminista, explicando que, se as amazonas efetivamente existiam, era devido a determinadas condições que tornavam a sua realidade não apenas possível, mas lógica. A racionalidade do argumento é flagrante no trecho que segue:
Constata-se, pois, o entrelaçamento de temas secundários no assunto central, que é o da veracidade da existência das amazonas. La Condamine aproveita para inserir na sua reflexão um comentário sobre a necessidade de fugir da tirania – o que coincide com a crítica iluminista ao despotismo, no século XVIII – fazendo também referência às condições difíceis para aqueles que são maltratados nas colônias americanas. Em uma passagem sobre os jacarés, distancia-se muito dos relatos do século XVI, que descreviam de forma amalgamada vários tipos de répteis, associando-os a uma hipotética descendência de animais fantásticos. Se Léry (1975, p.142-143) afirmava ter visto um “monstruoso lagarto” que abria a boca e soprava de forma violenta (poderíamos associa-lo à imagem de um dragão medieval), La Condamine conta simplesmente que:
Outro viajante do Século das Luzes que, em suas expedições, passou também pelo Brasil foi Louis-Antoine, conde de Bougainville. Partiu da Europa em 1766, deu a volta ao mundo e regressou à França no ano de 1769. Sua estada no Rio de Janeiro, porém, foi breve, apenas o tempo de uma escala técnica. Mesmo assim, foi recebido pelo vice-rei Antonio Alvares da Cunha, que o convidou para um espetáculo na Casa de Ópera do padre Ventura, um teatro de certo destaque que encenava peças com artistas brasileiros. Seu relato sobre o que assistiu foi severo, afirmando que uma obra-prima de um autor europeu contrastava com a má qualidade do trabalho local:
O viajante setecentista, ilustrado, observa, descreve, critica. Seu imaginário é balizado pela crença no progresso, pelas virtudes da civilização, e mesmo a voz de Rousseau e as visões do bom selvagem não chegam a valorizar, de forma absoluta, o estado de natureza. A sociedade francesa do iluminismo já não se permite mais cultivar os mitos e as maravilhas da Idade Média. Vai sendo construído, pois, um exotismo a partir de um Outro que é explicado e catalogado e, sobretudo, comparado com os europeus. Mapeamento, experiência e inventário são as atividades principais dos que, no século XVIII, partem não mais em busca de uma inatingível Cocanha, como havia sido o caso daqueles que os precederam, mas sim imbuídos de novos objetivos mais adequados à Razão iluminista. Conclusão Os olhares franceses sobre o Brasil, nos séculos XVI e XVII, foram marcados por um forte imaginário medieval que ainda se fazia presente numa Europa na qual o Renascimento e, portanto, a modernidade, não se difundiam de maneira uniforme. Tanto a cultura popular quanto a erudita mantiveram-se influenciadas por toda uma gama de maravilhoso e de fantástico que era visível também na herança artística, nas ilustrações dos textos que circulavam em diversos ambientes e também nas esculturas das grandes catedrais. O bestiário da Idade Média ainda era evocado e, portanto, podia ser facilmente transposto para as visões dos viajantes, pois o fantástico permeava o real. Nos relatos franceses dos séculos XVI e XVII, apesar das diferenças que pudessem separar católicos e protestantes, permaneceu o fio condutor de uma forte expectativa do encontro com o estranho. Foi, então, a capacidade de aceitar o maravilhoso, que se constituía em parte do arcabouço mental da época, o que deu credibilidade aos relatos enraizados nos mitos. Credibilidade esta que permitiu aos viajantes quinhentistas e seiscentistas uma significativa abertura do olhar para descrever o Outro. Mais adiante é a razão, entendida como explicação que se pretende coerente e fundamentada em parâmetros europeus de “civilização” que estará no âmago dos novos discursos sobre o Brasil. Ocorrerá, então, um deslocamento dos interesses de uma França que entra na modernidade e que começa a viver sob a influência da Ilustração, das novas aquisições da ciência e, muito claramente, do desejo de afastar velhas crenças. O exotismo descrito pelos viajantes do século XVIII é elaborado fundamentando-se nas visões do Oriente muito mais do que nas do Brasil. Os textos da época deixam evidente que o olhar sobre o Outro não é mais aquele olhar que aceita o fantástico, o desmedido. Buffon sentencia, com a chancela de sua autoridade de naturalista e de responsável pelo Jardin du Roy, que a natureza bruta não é digna de admiração, pois é “degenerada” (BUFFON, 1988, p. 259- 260). Os missionários que vão ao Extremo Oriente mostram à Europa a beleza organizada dos jardins e da sociedade da China. A razão iluminista, permeando todo esse universo mental, participa da destruição das crenças nos mitos e maravilhas que haviam se mantido até meados do seiscentos. Nos séculos XVI e XVII, a presença de um importante corpus de mirabilia permitia uma riqueza de interpretações que não necessariamente se atrelava a modelos lógicos, construídos a partir do racionalismo eurocêntrico. Ainda era possível acreditar no estranho, no diferente, e relatá-lo por escrito a um público que também compartilhava da mesma mentalidade, na qual havia lugar para o deslumbramento. No entanto, quando a ciência passa a se constituir no principal instrumento para a leitura do Outro, ela passa também a explicá-lo, e a razão se torna a chave para descrever os comportamentos não europeus. Mas o que se pode observar é que o pensamento racional e a compreensão da diferença, com base nas novas aquisições da História Natural, não se constituem na garantia de maior tolerância para com a diversidade do mundo. O abandono do maravilhoso medieval, longe de ter representado um avanço na descrição do desconhecido, traduziu-se numa perda para o entendimento mais rico e complexo da alteridade. Bibliografia ABBEVILLE, C. d’. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Tradução de Sérgio Milliet. Apresentação Mário Guimarães Ferri. São Paulo/Belo Horizonte: USP/Itatiaia, 1975. BIBLIOTHÈQUE NATIONALE DE FRANCE. Indes merveilleuses: l’ouverture du monde au XV siècle. Paris: Bibliothèque Nationale/ Chancellerie dês Universités de Paris, 1993. 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correspondência Recebido em 30/08/2006 * Centro Universitário de Brasília,
UniCeub Quais foram as principais mudanças que aconteceram depois que os europeus chegaram no Brasil?Mas a abertura dos portos foi apenas a primeira das muitas mudanças que acompanharam a corte ao Brasil. Outra revolução foi a liberação das manufaturas ou indústrias. Com apenas essas duas medidas, o Brasil libertava-se de três séculos de monopólio português e entrava no sistema internacional de comércio e produção.
O que mudou com a chegada dos europeus?Os primeiros impactos ocorreram com a exploração econômica dos recursos naturais e da terra, como também pelo genocídio de milhões de seres humanos. Os europeus trouxeram ainda para o continente milhões de africanos escravizados, que com seu suor e sangue foram utilizados para construir a sociedade americana atual.
O que aconteceu quando os europeus chegaram ao Brasil?No ano de 1500, os primeiros portugueses chegaram ao chamado “Novo Mundo” (América), e com eles o navegador Pedro Álvares Cabral desembarcou no litoral do novo território. Logo, os primeiros europeus tomaram posse das terras e tiveram os primeiros contatos com os indígenas denominados pelos portugueses de “selvagens”.
Quais os impactos da chegada dos europeus no Brasil?Os principais impactos causados pela chegada dos portugueses ao Brasil foram, entre outros, a morte de milhões de indígenas, a exploração acelerada dos recursos naturais, a povoação do território com colonos europeus e o estabelecimento de rotas de comércio internacional, inaugurando o capitalismo comercial.
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