Qual o ponto de partida do pensamento de Sartre sobre a liberdade?

Pedro Henrique Guimarães de Moura

O homem, tal como concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. (Jean-Paul Sartre)

1 Sartre e sua filosofia

Desde os primórdios da idade da razão, os questionamentos sobre o ser e sobre sua essência tem obtido lugar de especial destaque na construção filosófica. Buscou-se uma essência universal que poderia factualmente ser encontrada em todo o gênero humano. Buscava-se um ponto comum ao ser humano, que possivelmente poderia ser identificado como sua essência. No entanto, para Sartre, pensar a natureza humana dessa forma é deveras empobrecedor. A existência é anterior a uma essência. E tal essência não constitui em sentido estrito a essência universal buscada pelos filósofos antigos.

A filosofia de Sartre serviu de modelo para no mínimo duas gerações e tornou-se um marco do século XX. Sartre apresentava fácil transição nos campos da arte, bem como literatura, filosofia, política etc. De uma capacidade intelectual envolvente, foi também militante e teve influência direta em movimentos políticos na França. Principalmente aqueles que levavam a bandeira da liberdade, que foi uma das questões tratadas à exaustão pelo filósofo.

A filosofia existencial de Sartre, intuição que fundamenta todo o seu pensamento, é fruto de sua experiência, tanto pessoal quanto histórica. Num contexto conturbado, de grandes guerras e de desvalorização do homem, Sartre se impõe como expoente da filosofia existencialista. Em seus escritos, se mostra uma pessoa que não apenas passou pela existência, mas que se fez questionar o sentido real dessa, e que conferiu à mesma um fim diferente, livre de deliberações exteriores.

Muitos afirmam que o homem é fadado a liberdade, condenado a ser livre. Isto é claramente verossímil. No entanto, nos parece a existência ser uma condenação anterior e maior à liberdade. É claramente lógico afirmar que a liberdade se dá numa existência. Se, no entanto, não houver um ser existente não haverá necessidade de liberdade. Tais conclusões nos levam a afirmar que o cerne da filosofia de Sartre é a existência. O restante é consequência.

Nosso ensaio carrega em germe a tentativa de explicitar a base da filosofia sartriana: existir é necessário ao ser, é anterior a sua essência. Essa afirmação nos ajudará a especificar o cerne do pensamento de Sartre, sem deixar, no entanto, de apresentar algumas decorrências mais diretas da filosofia da existência, ou como conhecida, existencialismo.

2 O existencialismo: a doutrina da autoconstrução

Na concepção de Sartre, a doutrina existencialista nada mais é que um humanismo, ou seja, uma doutrina antropocêntrica, mas que nunca toma o homem como fim, pois, como veremos, este está sempre por fazer-se. Através do existencialismo a vida humana se torna potencialidade e possibilidade. O homem no existencialismo torna-se autor primário da verdade e da ação. Contudo, é crescente a atitude de identificar o existencialismo, ou atitudes existencialistas, com ações pessimistas. Por isso, a necessidade de se clarificar as verdades da doutrina existencialista. Levados por preconceito e prejuízos, o existencialismo é fortemente criticado por ser uma doutrina que acentua o lado mau da vida humana. Sartre vê no existencialismo não um pessimismo, mas um otimismo, e afirma que o que amedronta os que a criticam é, única e exclusivamente, o fato de deixar ao homem a possibilidade de escolha, a potencialidade de transformação. Ouve uma vulgarização do termo existencialismo, o que criou grande resistência na propagação dos ideais e da verdadeira leitura existencial. Tudo o que era titulado como escandaloso ganhava a conotação de existencialista. A expressão existencialismo ganhou tamanha extensão e amplitude de conotação, que em si mesma perdeu o sentido, a ponto de afirmar Sartre não significar absolutamente nada.

Existem basicamente duas escolas existencialistas, sendo os cristãos e os ateus. Ambas as escolas, com a diversidade de seus representantes, comungam na afirmação de que a existência precede a essência, ponto fundante da doutrina existencialista. Sendo assim, faz-se necessário ao homem partir da subjetividade, e não de um algo a ser copiado, seguido, imitado. Existir é anterior, é necessário, é indispensável ao ser. Numa visão técnica do mundo, a essência precede a existência. Numa primeira instância se tem a necessidade da coisa. Depois se dá corpo a essa necessidade, fabricando-a por assim dizer. E por fim, se faz uso do ser fabricado para o fim pensado anteriormente, ou seja, faz-se coincidir sua essência, modelo para um criador, e que contém em si o fim da coisa, com a existência, que é a coisa existindo e atualizando sua essência. “Temos, pois, uma visão técnica do mundo, na qual se pode dizer que a produção precede a existência” (SARTRE, 1978, p.5).

Partindo dessa afirmação, de que a existência precede a essência, a doutrina existencialista enfrentará dois pontos históricos de grande peso: o Deus cristão e o conceito universal afirmado pelos filósofos ateus do século XVIII.  O Deus cristão é o artífice, o criador de tudo e de todos. O conceito de homem, a essência, preexiste na inteligência divina, que o dá forma, subjugando a vontade humana, ou sua finalidade, à vontade divina, longe de qualquer liberdade. Quanto aos filósofos ateus, extrai-se a ideia de Deus, mas não que a essência precede a existência. Existe uma essência primária que rege o modo de existir de todos os homens. “O homem possui uma natureza humana; esta natureza, que é o conceito humano, encontra-se em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal – o homem” (SARTRE, 1978, p.5).

O existencialismo proposto por Sartre, contendo o mais puro e refinado ateísmo, retira toda a possibilidade da essência preceder a existência, ou seja, de haver um artífice que concede uma forma, ou mesmo um conceito universal. É nas mãos do homem que recai a responsabilidade por sua essência. O homem é artífice de seu próprio ser. E só se cria depois de existir.

O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou como diz Heidegger, a realidade humana (SARTRE, 1978, p.6).

O homem primeiramente existe, surge no mundo, mas não é nada. Num segundo momento ele se define, ele abraça uma essência, e será como lhe convier. Não existe uma natureza humana, existe o homem num processo de construção de sua essência, num processo de ser, de se fazer. O homem é o que ele faz de si. Aqui se encontra o princípio do existencialismo: a potencialidade do ser humano livre de qualquer inferência externa a sua vontade. Esta é a maximização da subjetividade humana, no qual o sujeito é o que ele próprio se faz ser. Ele existe enquanto se lança para o futuro e tem consciência de que se projeta para tal. Para ser, é necessária uma atitude ativa por parte do homem que busca construir-se. Ele existe enquanto projeto de essência, enquanto construção de ser.

O homem é, antes de mais nada, um projeto que se vive subjetivamente, em vez de ser um creme, qualquer coisa podre ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto: nada há no céu inteligível, o homem será antes de mais o que tiver projetado ser (SARTRE, 1978, p.6).

Como afirma Sartre, o homem será o que tiver projetado ser, e tão somente isso, o que exclui a faculdade da vontade. Ele é o que projeta ser, não o que quer. A vontade, na concepção de Sartre, encontra-se na categoria das coisas posteriores a existência, sendo ela fruto da construção do ser do homem. O querer como decisão consciente é manifestação de uma escolha mais original; do projetar-se.

3 O homem como ser de responsabilidade e de angústia

Tendo o principio básico do existencialismo, Sartre começa a perscrutar os frutos diretos dessa condição do homem. Se realmente a existência precede a essência como afirma Sartre, o homem é o responsável direto por aquilo que é. O existencialismo atribui ao homem total responsabilidade pelo por aquilo que ele é. A problemática da responsabilidade é um dos grandes frutos decorrentes da doutrina existencialista. O homem não pode depositar em nenhum exterior a culpa por suas frustrações, fracassos, desilusões etc. Ou mesmo eleger um tutor para orientá-lo ou mesmo para guiá-lo nas ações. É ele o único e grande responsável por ser como é. E tal responsabilidade é bem mais ampla do que se pensa. Esta auto-responsabilidade não conduz o homem a fechar-se numa estrita individualidade, mas o abre para o coletivo, pois, ao ser responsável por si, torna-se também responsável por todos os homens. Ao escolher a si o homem escolhe aos outros. Ao se criar o homem cria uma imagem válida para todos os homens. Esta afirmação amplifica a dimensão da responsabilidade que passa do âmbito restrito do sujeito para o coletivo extenso. Ao erigir o que é bom para sua individualidade, ou seja, formar uma norma de conduta, uma moralidade, o homem propõe a humanidade a sua escolha. Portanto, sua responsabilidade não é pelo individual, mas pelo coletivo.  As decisões individuais são exemplo e ponto de partida para as decisões de toda a humanidade. Ser isto ou aquilo é propor à humanidade que é bom ser isto ou aquilo.

Com efeito, não há dos nossos atos um sequer que, ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal, o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos. (…) Assim sou responsável por mim e por todos, e crio uma certa imagem do homem por mim escolhida; escolhendo-me, escolho o homem (SARTRE, 1978, p.6-7).

Outros frutos do existencialismo, derivados da responsabilidade, são a angústia, o abandono e o desespero. Sartre afirma que o homem é angústia. O homem traz em germe o compromisso de se construir. No entanto, ele percebe que não apenas escolhe para si, mas que também ocupa o papel de legislador, pronto a escolher o melhor para si e para a humanidade. Eis um bom motivo para viver angustiado. Qualquer passo mal dado pode ser a ruína pessoal e coletiva. Angustiar-se é bom, pois mostra que o indivíduo está fielmente comprometido com o propósito de escolher o melhor para todos. Consequentemente, Sartre destaca a atitude de má-fé, que nada mais é que o falseamento dessa responsabilidade, um mentir para si próprio, na tentativa de se livrar da angústia.

O aspecto de mentira que possui a má-fé diz respeito ao erro e à falsidade que o sujeito faz contaminar a atividade de sua consciência. Este é um dos principais aspectos da má-fé: ser uma falsificação da consciência humana, na medida em que é uma compreensão equivocada das estruturas ontológicas mais fundamentais da condição humana. É em razão desse aspecto, o aspecto de ser um engano dirigido do sujeito à si mesmo, que a má-fé é comumente confundida com aquilo que tradicionalmente é chamado, na psicologia, de auto-engano ( COSTA, 2012, p.48).

Por mais persistente que seja a tentativa de falsear e de fugir, a angústia sempre aparecerá. A angústia é primaria ao homem, bem como a existência. Se o homem é fadado a existir, ele é também fadado a angustiar-se, mesmo que este tente disfarçá-la. Se o homem não se pergunta pela qualidade de seus atos em vista do bem da humanidade é porque este tenta disfarçar, numa atitude de má-fé, seu estado angustiante. Não se trata de uma angústia que conduz à estagnação, mas um estado natural do homem, que naturalmente tem responsabilidade e que naturalmente se constrói e que existe. É na decisão e na ação que se encontra a angústia existencialista.

Esta espécie de angústia, que é a que descreve o existencialismo, veremos que se explica, além do mais, por uma responsabilidade direta frente aos outros homens que ela envolve. Não é ela uma cortina que nos separa da ação, mas faz parte da própria ação (SARTRE, 1978, p.8).

O homem também se sente desamparado, pois com a retirada da ideia de Deus, perde-se o ponto de apoio de várias dimensões humanas, em especial a dimensão moral. Houve no decorrer da história um movimento que validava a retirada de Deus, mas que afixava a existência de certos valores a priori num céu inteligível (o radicalismo). O existencialismo, no entanto, retira Deus e com ele o céu inteligível, e assenta no homem o princípio e fonte dos valores humanos. O homem sente-se desamparado por não ter um ponto de segurança para se apoiar.

Dostoiévski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue (SARTRE, 1978, p.9).

4 Sentença final: a liberdade

Eis que chegamos à questão da liberdade que, como podemos perceber pelo caminho percorrido, é mais uma dimensão ou decorrência das afirmativas existenciais. Se factualmente a existência precede a essência, diz Sartre, não haverá lugar alguma para o determinismo, o que abre amplo precedente para a liberdade. O homem é liberdade. Na falta de um Deus legitimador, jurisprudente, não existe para o homem uma linha de conduta a ser seguida, obedecida à risca. Ou mesmo um código penal que paute a conduta dos indivíduos. O homem está condenado a ser livre, fadado à liberdade absoluta. “Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer” (SARTRE, 1978, p.9). A liberdade é constituinte do ser do homem. As escolhas brotam como fruto da liberdade. Somos livres e condenados a escolher. Mesmo quando não escolhemos, escolhemos não escolher portanto, fizemos em suma uma escolha. Não existe uma moral geral que dita ao homem o que fazer. Deve o homem por meio da escolha, da liberdade, inventar a si próprio. Quando questionado por um jovem, na esperança de que este fosse seu conselheiro, Sartre, sem dar uma resposta, mas apenas demarcando um horizonte reflexivo, expõe o seguinte ponto: “você é livre, escolha, quero dizer, invente. Nenhuma moral geral pode indicar-vos o que há a fazer; não há sinais no mundo” (SARTRE, 1978, p.11). Sobre o homem pesa a inteira responsabilidade proveniente da escolha livre.

Quanto ao desespero, nada mais é que a ação sem esperança. Como se encontra num mundo desprovido de auxílio divino, deve o homem contar com o conjunto de possibilidades que tornam a ação possível, e não com uma intervenção exterior e auxiliadora. Podemos contar apenas com o que depende de nossa vontade.

Lembremo-nos que o homem é inteiramente livre, e que não existe uma natureza humana que disponha ou determine atitudes comuns aos homens. Tal afirmativa conduziria o homem ao desespero constante quanto à construção histórica à medida que, se devo contar com o desconhecido, indeterminado e totalmente livre, posso hoje apoiar uma ação que no futuro se tornará maléfica. Contudo, o existencialismo não se propõe como uma doutrina do quietismo ou da estagnação, mas sim da ação. Deve o homem existir em seu tempo da melhor forma possível, lembrando-se de sua responsabilidade para com a humanidade, sem se ocupar de um futuro ao qual ele sequer verá. A parcela de contribuição para a construção desse futuro que cabe a mim deve ser dada no presente, sem pré-ocupação de como se dará o futuro.

Sartre é incisivo quanto às acusações feitas ao existencialismo, incriminado de doutrina do quietismo.

O quietismo é a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo que eu não posso fazer. A doutrina que vos apresento é justamente a oposta ao quietismo, visto que ela declara: só há realidade na ação; e vai aliás mais longe, visto que acrescenta: o homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se realiza , não é, portanto, nada mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida (SARTRE, 1978, p.13).

Estas afirmações nos trazem de volta a atitude de má-fé. Muitos se lamentam de situações desfavoráveis, de paixões não vivenciadas, de amores não encontrados, justificam de inúmeros modos os infortúnios e insucessos de suas vidas colocando sempre a causa precípua externa a si. Anulam e disfarçam sua potencialidade para a construção de si e a liberdade para a ação ativa no mundo e na própria vida. Para a doutrina existencialista não existe amor diferente daquele que se constrói. O gênio não existe na teoria ou na potencialidade, ele existe sendo, de modo que se verá o grande artista quando este produzir sua grande obra: da mesma forma o homem. Esse será em sua totalidade quando agir, quando estiver se criando, sendo no mundo. “O que queremos dizer é que um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem estes empreendimentos” (SARTRE, 1978, p. 14).

O existencialismo a cada momento se mostra mais uma doutrina do otimismo, da valoração do ser humano, ou mesmo de sua exaltação, do que uma doutrina pessimista, como afirmavam os marxista e os cristãos. Os marxistas acusam o existencialismo de extirpar a possibilidade de solidariedade. Os cristãos, furiosos pela orfandade de seu Deus, acusam o existencialismo de promover a amoralidade e o completo caos.  O que irrita tanto marxistas, quanto cristãos, quanto outros que se colocam a criticar negativamente o existencialismo, é que nessa doutrina se mostra o homem como é, sem máscaras ou subterfúgios. Sartre diz que se se descreve um covarde sendo tal por influência direta do meio, ou por hereditariedade, ou mesmo determinismo psicológico ou orgânico, tal descrição agrada diversas partes. Mas, quando o covarde é descrito ao modo existencialista, colocando sobre este a inteira responsabilidade por sua covardia, de se ter constituído covarde por seus atos, isso se torna claramente ponto de discórdia. Não por estar o existencialismo errado, mas por temerem as partes, assumir a miséria da natureza humana e sua responsabilidade em tal. Não se nasce covarde ou herói, se torna pelas atitudes covarde e herói. Estas doutrinas sim propõem a estagnação e o quietismo, pois levam o indivíduo à alienação e à conformação com o estado em que se encontra sem a mínima chance de mudança.

… não há doutrina mais otimista, visto que o destino do homem está nas suas mãos; nem como uma tentativa para desencorajar o homem de agir, visto que lhe diz que não há esperança senão na sua ação, e que a única coisa que permite ao homem viver é o ato. Por conseguinte, neste plano, nós preocupamo-nos com uma moral de ação e de compromisso (SARTRE, 1978, p.15).

 A doutrina existencialista propõe a subjetividade do indivíduo, que não é em sentido algum uma egolatria. É baseado no cogito cartesiano que se instala a verdade absoluta da consciência. Através do cogito (penso, logo existo), se chega à verdade absoluta e necessária, que está ao alcance de todos, uma vez que nos apreendemos sem intermediários. O existencialismo, segundo Sartre, é a única das doutrinas que confere dignidade ao homem e que não faz desse objeto. As visões materialistas enquadram os homens em determinadas qualidades, como fruto de meios diversos etc. Anulam a subjetividade do homem e instalam a massificação e a generalização. O existencialismo quer olhar o homem em sua subjetividade, na sua particularidade. Subjetividade essa que, como já vimos anteriormente, não se apresenta como rigorosamente individual, mas também num coletivo. Pelo penso, o outro se torna tão certo a nós quanto nós mesmos. O outro torna-se,  assim, condição de existência para o indivíduo e de seu autoconhecimento. Nesse movimento o homem se abre à intersubjetividade, pela qual ele descobre sobre si e sobre os outros e valida sua existência. Faz-se necessária à existência do homem o reconhecimento por parte do outro.

5 Um comum aos homens

Não existe presente nos homens uma essência universal, uma vez que a existência precede a essência, e o homem é responsável por construir sua essência, por assim dizer. Mas, Sartre afirma que existe uma universalidade humana de condição. “Por condição entendem mais ou menos distintamente o conjunto de limites a priori que esboçam a sua situação fundamental no universo” (SARTRE, 1978 p.16). As situações históricas podem variar de acordo com a época, o país, a cultura etc. Contudo, tais condições a priori, como a existência, a mortalidade, a força vital e a necessidade de relacionar-se, são próprias do gênero humano e livres de influências históricas. Os projetos humanos são baseados nessa universalidade humana de condição, uma vez que a existência humana se constrói em face de negar, ultrapassar ou acomodar-se a tais limites.  Tais projetos não definem o homem, não o tornam acabado, mas permitem que ele seja reconhecido, já que a universalidade do homem está presente também nos projetos, permitindo que tais sejam compreensíveis para todos os homens. É importante frisar que tal universalidade não é dada, do contrário a existência no homem não seria precedente, uma vez que a universalidade poderia facilmente ser identificada com a essência. Assim, a universalidade é fruto de um processo de construção. Partindo do exemplo do outro, exemplo este que o ser ao se construir também fornecerá, é que o homem constrói para si o universal. O homem sendo livremente, no cotidiano, na construção constante de sua essência, pelo compromisso da responsabilidade com a humanidade, realiza sua universalidade humana de condição.

O homem é um ser de escolha, como doutrina o existencialismo. Contudo, ele não pode escolher qualquer coisa. A escolha só lhe é possível num sentido: escolher. Mesmo quando não escolhe, ele escolhe. Não se escolhe por capricho, é antes por responsabilidade, por compromisso com a humanidade. Como não existem valores a priori, a escolha moral é também uma construção. Só se poderá julgá-la após sua completa realização. É puramente uma situação criadora pela qual o homem é também artífice da moral. A moral existencialista é fruto de criação e invenção. Ter uma moral é uma exigência do homem, que faz também a escolha dessa e não pode deixar de fazê-la. Sartre explicita a possibilidade do julgamento moral, levando em consideração a gêneses da moralidade no existencialismo:

Podemos, no entanto, julgar moralmente, porque, como já disse, é em face dos outros que escolhemos e nos escolhemos a nós. Podemos julgar, antes de mais (e isto não é talvez um juízo de valor, mas sim um juízo lógico), que certas escolhas são fundadas no erro e outras na verdade. Pode julgar-se um homem dizendo que ele está de má-fé. Se definimos a situação do homem como uma escolha livre, sem desculpas e sem auxílio, todo o homem que se refugia na desculpa que inventa um determinismo é um homem de má-fé. Objetar-se-á: mas por que não se escolheria ele de má-fé? Respondo que não tenho que julgá-lo moralmente, mas defino sua má-fé como um erro. Neste ponto não se pode escapar a um juízo de verdade (SARTRE, 1978, p.19).

O homem deseja a liberdade como fundamento de todos os valores, de forma que os atos dos homens de boa-fé tem em alvo a busca da liberdade. Ao procurar a liberdade, o homem percebe que sua liberdade depende da liberdade do outro, bem como a liberdade do outro da sua. Pelo compromisso o homem sente-se obrigado a querer a sua liberdade e a liberdade do outro. “Pode escolher-se tudo, se é no plano de uma decisão livre” (SARTRE, 1978, p.20).

Antes de viver, de existir, a vida não é nada. Ao homem depende dar um sentido à existência, construir a vida. Tal afirmação valida os valores existencialistas e os salvam da crítica de não levarem em germe a seriedade, visto que são de opção do homem. É exatamente por ser de opção que serão valores positivos, pois o homem não escolherá para si e para a humanidade o que é ruim.

6 O existencialismo é um humanismo

O humanismo, do qual se diz ser o existencialismo, diz-nos que o homem encontra-se constantemente fora de si mesmo, projetando-se e perseguindo fins transcendentes. E é exatamente nesse movimento que o homem sustenta sua existência. Essa transcendência se dá num sentido de superação, num estado de presença num universo humano: este é o humanismo existencialista. O humanismo sempre lembrará o homem de que ele é o legislador e artífice de sua essência, de seu ser. E de que é na busca fora de si que o homem se realiza como ser humano completo.  Sartre reafirma que em sentido algum o existencialismo busca afogar o homem em desespero, mas quer ser arauto do otimismo.

… é necessário que o homem se reencontre a si próprio e se persuada de que nada pode salvá-lo de si mesmo (…) Neste sentido, o existencialismo é um otimismo, uma doutrina da ação, e é somente por má-fé que, confundindo o seu próprio desespero com o nosso, os cristãos podem apelidar-nos de desesperados (SARTRE, 1978, p.22).

O existencialismo quer, antes de tudo, clarificar ao homem sua autonomia precípua sobre si mesmo, libertando-o de situações que o impedem de crescer, lembrando-o de sua inteira responsabilidade sobre si e sobre a humanidade.  A filosofia sartriana é puramente existencialista. A questão da existência, como vimos, antecede angústia, liberdade, má-fé, desespero etc. São elas fruto e decorrência direta da existência. O homem é responsável por ser inteiramente homem. O filósofo medieval Agostinho de Hipona certa vez disse que diante de Deus o homem é o que é; nem mais, nem menos. O existencialismo diria que diante do homem, o homem é o que é, podendo livremente ser mais, ou menos. A doutrina existencialista traz em germe o otimismo, que convoca o homem a encarrar suas potencialidades e possibilidades, saindo da estagnação e sendo peça ativa na construção de seu próprio ser. Sartre propõe pelo existencialismo que o homem deve libertar-se do julgo das maneiras habituais e cristalizadas de ser, pensar e agir. E, por constituir-se ser de absoluta liberdade, projetar-se para encarar nossa realidade tal como é: o homem inventa o homem.

Referências

COSTA, Vítor Hugo dos Reis. Má-fé e Psicanálise Existencial em Sartre. 2012. 115 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2012. Disponível em: < http://w3.ufsm.br/ppgf/wp-content/uploads/2011/10/V%C3%ADtor-Costa-M%C3%A1-f%C3%A9-e-psican%C3%A1lise-existencial-em-Sartre.pdf>. Acesso em: 02 out. 2012.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 191 p. Título original: L’Existentialisme est un Humanisme. (Os pensadores).

Qual é o pensamento de Sartre sobre a liberdade?

Sartre conceitua a liberdade como uma condição intransponível do homem, da qual, ele não pode, definitivamente, esquivar-se, isto é, o ser- humano está condenado a ser livre e é a partir desta condenação à liberdade que o homem se forma. Não existe nada que obrigue o ser humano agir desse ou daquele modo.

Qual o ponto de partida do pensamento de Sartre?

O ponto de partida do pensamento de Sartre sobre a liberdade é a ideia de que “a existência precede a essência”. Ou seja, o homem primeiro existe e só então passa a definir o que é. O filósofo usa uma comparação para explicar a ideia.

Qual é o pensamento de Sartre?

A filosofia de Sartre defende a liberdade e a autenticidade de cada ser humano como essenciais, não obstante a angústia que tal liberdade pode nos trazer.

Como Sartre define valor escolha e liberdade?

Para o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, o ser humano é condenado a ser livre, e a liberdade reside em escolher e aceitar as consequências de nossos atos. Podemos ainda escolher não escolher; podemos simplesmente não agir, não fazer nada. Porém, ao fazer isso, já estamos escolhendo.