Na sentença estrangeira homologada no brasil não pode conter manifesta ofensa à ordem pública.

O reconhecimento de sentença estrangeira, a ordem pública material e o “divórcio por repúdio” (“talak divorce”)

Patricia Novais Calmon

Advogada. Mestranda em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Presidente da Comissão da Adoção e do Idoso do IBDFAM-ES.

Luiz Felipe Costa Santana

Mestrando em Direito Processual pela UFES. Pós-graduando em Direito Internacional e Direitos Humanos pela PUC Minas. Bacharel em Direito pela UFES.

A maioria dos países ao redor do globo atualmente admite a extinção do vínculo conjugal pelo divórcio. No Brasil, o divórcio foi admitido a partir de 1977, por intermédio da Lei nº 6.515, persistindo a existência de requisitos temporais e a discussão de culpa até o advento da Emenda Constitucional nº 66, de 2010. Hoje, o divórcio é um direito potestativo, que se revelará por meio da manifestação de vontade de uma das partes e da mera sujeição da outra.

Entretanto, em algumas culturas a extinção do vínculo conjugal pode também se manifestar através do denominado repúdio, ainda comum em tradições islâmicas. Aliás, o próprio divórcio tem sua origem histórica em tal instituto,[1] e representa o ato do marido repudiar, de maneira unilateral, a sua esposa. Os motivos justificadores de tal rejeição são os mais variados, como a impossibilidade de ter filhos, abandono do lar, “dentre outras tantas causas, se ela simplesmente falasse com azedume”.[2] Assim, seria um poder investido ao marido de repudiar a sua esposa como e quando quiser.[3]

Dúvida inexiste que o repúdio é instituto desconhecido em países da cultura ocidental e, por certo, encontra barreiras nos próprios princípios fundamentais e estruturantes de tais nações, aos quais podemos citar a igualdade entre gêneros e o princípio da não discriminação. Deve-se mencionar que se trata de um instituto em declínio até mesmo em países de tradição islâmica, os quais atualmente exigem que, para a produção de efeitos, seja tal forma de extinção do vínculo conjugal posteriormente validado por autoridades judiciais ou religiosas, com vistas à proteção dos direitos da mulher.[4] Por oportuno, convém mencionar que em 2017 o Supremo Tribunal da Índia declarou tal prática inconstitucional por violar direitos fundamentais.[5]

Ao atribuir um poder exclusivamente ao homem, em pronunciar a rejeição da esposa perante testemunhas, automaticamente o coloca em posição de superioridade em tal relação, o que não mais encontra respaldo nos mais diversos sistemas jurídicos ao redor do mundo, como o Brasil, por ser a materialização de estruturas hierarquizadas e patriarcais não mais condizentes com o estado de coisas que se almeja nos dias atuais.

Apesar disso, o contexto cultural específico dos países de tradição islâmica também deve ser analisado, já que o respeito ao multiculturalismo em escala transnacional é essencial e reflete um mandamento de respeito às diferenças. Fala-se, em uma “cidadania multicultural”, na qual é possível o reconhecimento de “novas concepções de cidadania, de uma cidadania cosmopolita assente no reconhecimento da diferença, e na criação de políticas sociais procurando a redistribuição, a inclusão e a redução das desigualdades”.[6]

Mas, neste cenário, é questionável a viabilidade de reconhecimento internacional de direitos adquiridos em culturas distintas e que se manifestem como violadoras de direitos fundamentais dos envolvidos, como é o caso do repúdio.

Nesse ponto, outro elemento entra em cena, já que, nesta combinação entre globalização e multiculturalismo, existe ainda um dever de cooperação entre sistemas jurídicos. Isso faz com que as possíveis dificuldades da aceitação do repúdio como modalidade válida de extinção do vínculo conjugal também acarrete reflexos na perspectiva do direito internacional privado, mais especificamente na produção de efeitos jurídicos em país distinto daquele que proferiu a decisão, por intermédio do reconhecimento de decisões estrangeiras.

Assim, qual seria o limite de reconhecimento de decisões proferidas no exterior e que revelam uma violação aos princípios fundamentais do Estado ao qual se tem por interesse a produção de seus efeitos jurídicos? Seria possível o reconhecimento de sentença estrangeira que regulamentasse o repúdio?

Pois bem. No Brasil, a cooperação jurídica entre Estados soberanos não é fenômeno exatamente novo. Afinal, o reconhecimento de sentença estrangeira é admitido desde o ano de 1878, em razão de autorização concedida pela Lei nº 2.616/1875 e pelo Decreto nº 6.982/1878, tendo, desde o seu início, (sido feita escolha pelo sistema da delibação), prescrevendo a vedação para a revisão do mérito da decisão estrangeira, sendo possível apenas a análise do preenchimento de requisitos objetivos para a homologação da referida decisão emanada por outro Estado soberano.[7]

Tal perspectiva é válida até os dias atuais e, no cenário legislativo de hoje, tem-se que neste tipo de ação haverá a necessidade de demonstração dos requisitos indispensáveis para a homologação da decisão, que são aqueles previstos no art. 963, CPC/15 e no Regimento Interno do STJ (arts. 216-C, 216-D, III e 216-F).

Dessa maneira, o autor deverá demonstrar os seguintes requisitos para a homologação da decisão estrangeira: a) ser proferida por autoridade competente; b) ser precedida de citação regular, ainda que verificada a revelia; c) ser eficaz no país em que foi proferida; d) não ofender a coisa julgada brasileira; e) estar acompanhada de tradução oficial, salvo disposição que a dispense prevista em tratado; f) não conter manifesta ofensa à ordem pública. Além destes requisitos, o Regimento Interno do STJ apresenta outros, ordenando que a petição: a) seja instruída com o original ou cópia autenticada da decisão homologanda e de outros documentos indispensáveis, devidamente traduzidos por tradutor oficial ou juramentado no Brasil e chancelados pela autoridade consular brasileira competente, quando for o caso (art. 216-C)[8]; b) ter transitado em julgado (art. 216-D, III)[9]; c) não ofender a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e/ou a ordem pública (art. 216-F).[10]

Por aqui, o Poder Judiciário já teve a oportunidade de se manifestar sobre o repúdio quando do julgamento da ação de reconhecimento de sentença estrangeira nº SE 2416-PQ. Na ocasião, o STF (que à época tinha competência para este tipo de ação), consignou que o repúdio, ou “talak”, poderia ser reconhecido no ordenamento jurídico brasileiro, pois, no caso, havia sido decretado por sentença e a mulher tinha sido citada e foi devidamente representada no respectivo processo originário. No caso, o STF analisou o cumprimento dos requisitos objetivos e inerentes à própria ação de reconhecimento de sentença estrangeira, sem adentrar no mérito da questão propriamente dita, até mesmo com lastro no sistema da delibação. Verificou que os direitos processuais dos envolvidos tinham sido cumpridos e, por isso, homologou a sentença estrangeira, de modo a produzir efeitos no Brasil o repúdio ocorrido no Paquistão.[11]

Também a Inglaterra já homologou decisão estrangeira sobre o repúdio no caso El Fadl v. El Fadl, em 2007.

Não obstante tais posicionamentos, quando do estudo do repúdio como forma de extinção do vínculo conjugal e pela possível produção de efeitos no sistema jurídico brasileiro, um dos requisitos se mostra fundamental: a não ofensa à ordem pública. E, inclusive, este parece ser o melhor enfoque para a análise da temática.

Aliás, tal ótica já foi sufragada pelo STF, que julgou improcedente a ação de homologação de sentença estrangeira, sob o argumento de que o repúdio afrontava a ordem pública nacional e, por isso, não poderia ser homologado (STF, SE 2373-Egito, DJ de 29-12-1977).[12]

Diante da abertura semântica e ambiguidade da expressão ordem pública, este requisito corriqueiramente é o fundamento utilizado pelo STJ (e, antes da EC nº 45/2004, pelo STF) para não homologar decisões estrangeiras. Aliás, a dificuldade conceitual do termo deriva da própria noção de que ele, por sua essência, não é um conceito fixo, mas sim variará no tempo (o que era violador da ordem pública pode passar a não ser, principalmente em razão de influxos sociais e mudanças legislativas) e entre países (o que viola a ordem pública no Brasil pode ser distinto da Argentina, por exemplo).

Além disso, pode se constituir através de graus: através de leis obrigatórias existentes em determinado Estado (primeiro grau) ou, por outro lado, através de incompatibilidades de natureza grave com os princípios fundamentais daquele ordenamento (segundo grau).[13] Adicionalmente, Jacob Dolinger sustenta a existência de uma ordem pública mundial, que será composta de normas de jus cogens e de princípios comuns à todas as nações civilizadas. Assim, regras estrangeiras que violam os padrões internacionais básicos, por exemplo, o princípio da não discriminação, direito à liberdade pessoal ou direito à vida, não devem ser admitidas.[14]

Essencial destacar, ainda, que a ordem pública poderá ser analisada sob a perspectiva material ou processual e, sem dúvidas, tal ótica acarretará reflexos na recusa ou aceitação de sentenças estrangeiras que regulamentem o repúdio.

No cenário do reconhecimento de sentenças estrangeiras, a ordem pública material acaba por impor uma necessária análise do mérito daquela decisão, para aferir se ela viola, de algum modo, os princípios fundamentais daquele ordenamento jurídico. Não significa uma revisão do mérito do que fora decidido por tribunal estrangeiro, mas, sim, uma análise superficial daquele conteúdo, para verificar se é possível, ou não, a homologação e, consequentemente, a produção de efeitos naquele país. Por outro lado, a ordem pública processual constitui análise sobre possível violação aos direitos fundamentais que correspondem ao devido processo legal, como, por exemplo, o respeito ao contraditório e a ampla defesa.[15] Esta última perspectiva pode se confundir com o cumprimento dos próprios requisitos objetivos e indispensáveis para a homologação da sentença estrangeira.

No julgamento proferido no SE nº 2416-PQ, o STF apenas focou sua atenção aos requisitos objetivos previstos em lei (e, implicitamente, à ordem pública processual), não tendo ingressado na análise da possível violação à ordem pública material. Já no SE nº 2373, o mesmo Tribunal adentrou em tal análise, julgando improcedente a ação por violação à ordem pública material, afinal, parece bastante claro que tal forma de extinção do vínculo conjugal viola direitos fundamentais da mulher.

Indubitavelmente, a temática se localiza em uma zona cinzenta, na qual não existem limites tão definidos entre a cooperação jurídica internacional e a aceitação do multiculturalismo global, já que entra em cena uma possível ofensa a princípios basilares do ordenamento jurídico nacional. Por certo, em um sistema jurídico como o brasileiro, a concessão de eficácia ao instituto do repúdio não parece se adequar aos mandamentos mais basilares da nossa estrutura normativa, que é pautada na não discriminação e na construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, CR/88). Respeito às diferenças culturais é essencial, mas, acima de tudo, a garantia em potência máxima de direitos e garantias fundamentais é primordial.


[3] “Technically, talaaq is a unilateral power vested in Muslim husband to repudiate his wife as and when he wishes”. BANI, Lawal Mohammed; PATE, Hamza A. Dissolution of Marriage (Divorce) under Islamic Law. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/234650383.pdf. Acesso em 29 mar. 2021.

[4] "A Argélia, Jordânia, Iran, Iraque, Paquistão, Marrocos e Síria, em legislação recente, procuraram coibir os abusos do repúdio e só reconhecem efeitos legais, quando tenha sido proferido perante um Juiz religioso ou civil, objetivando ainda tutelar os direitos da mulher" (STF - SE: 2416 PQ, DJ de 25-10-1978).

[6] RAMOS, Maria da Conceição Pereira. Globalização e multiculturalismo. Revista Eletrônica Inter-Legere (ISSN 1982-1662). Número 13, julho a dezembro de 2013. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/interlegere/article/download/4166/3400/. Acesso em: 29 mar. 2021.

[7] SOUZA, Nevitton Vieira. Sistemas de reconhecimento de sentença estrangeira no Brasil. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro. Ano 12. Volume 19. Número 3. Setembro a Dezembro de 2018. Periódico Quadrimestral da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ. ISSN 1982-7636. pp. 565-590.

[8] Redação dada pela Emenda Regimental n. 24, de 2016.

[9] Incluído pela Emenda Regimental n. 18, de 2014.

[10] Incluído pela Emenda Regimental n. 18, de 2014.

[11] STF, SE nº 2416 PQ, DJ de 25-10-1978.

[12] DIVÓRCIO PROCEDIDO PERANTE A EMBAIXADA DA REPUBLICA ARABE UNIDA (EGITO), NO BRASIL. DECRETAÇÃO POR MANIFESTAÇÃO UNILATERAL DO MARIDO. AFRONTA A ORDEM PÚBLICA. II. INCOMPETENCIA DA AUTORIDADE PROCESSANTE, DESVINCULADA TANTO DO DOMICILIO QUANTO DA NACIONALIDADE DAS PARTES. III. PEDIDO DE HOMOLOGAÇÃO INDEFERIDO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO (STF, SE 2373 AgR, DJ de 29-12-1977).

[13] TIBURCIO, Carmen. The Current Practice of International Co-Operation in Civil Matters (Volume 393), In: Collected Courses of the Hague Academy of International Law. Consulted online on 30 March 2021 http://dx.doi.org/10.1163/1875-8096_pplrdc_A9789004392748_01, p. 186.

[14] “Foreign rules that violate the very basic international standards, for instance the nondiscrimination principle, right to personal freedom or right to life”. TIBURCIO, Carmen. The Current Practice of International Co-Operation in Civil Matters (Volume 393), In: Collected Courses of the Hague Academy of International Law. Consulted online on 30 March 2021 http://dx.doi.org/10.1163/1875-8096_pplrdc_A9789004392748_01, p. 186.

[15] TIBURCIO, Carmen. The Current Practice of International Co-Operation in Civil Matters (Volume 393), In: Collected Courses of the Hague Academy of International Law. Consulted online on 30 March 2021 http://dx.doi.org/10.1163/1875-8096_pplrdc_A9789004392748_01, p. 186.

Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM

Não será homologada sentença estrangeira que viole a ordem pública?

Outrossim, no mencionado regimento, definiu-se que não será homologada a sentença estrangeira que ofender a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e/ou a ordem pública. Em razão dos requisitos citados, a sentença estrangeira somente surtirá os seus efeitos no território brasileiro com a sua aprovação.

Quando uma sentença estrangeira pode ser homologada no Brasil?

Qualquer sentença estrangeira, inclusive de divórcio, só terá eficácia no Brasil após sua homologação pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 4º da Resolução n. 09/STJ, de 04/05/2005).

Quais são os requisitos para que uma sentença estrangeira seja homologada no Brasil?

terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificada à revelia; ter transitada em julgado e estar revestida das formalidades necessárias para a execução no lugar em que foi proferida; estar traduzida por tradutor juramentado; ter sido homologada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Quais a situações em que a decisão interlocutória estrangeira não pode ser cumprida?

Além dos requisitos presentes no artigo 963 do Código de Processo Civil, como já dito, o regimento interno do Superior Tribunal de Justiça, em seu artigo 216-F, prevê que a decisão estrangeira não será homologada se ofender a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e/ou a ordem pública.