No Direito Internacional Privado A REMISSÃO FEITA POR Lei Estrangeira

G - Devolução ou Reenvio

31. O reenvio como problema da interpretação do direito de conflitos

Tem-se até aqui concebido a regra de conflitos como uma norma que essencialmente se destina a resolver concursos de leis. O pressuposto básico da norma de conflitos é, pois, tanto nas suas origens históricas como o seu significado actual, a existência de mais que uma lei que se candidata ou concorre à resolução de certa questão privada internacional – e isto directamente, através das suas normas de regulamentação directa (materiais) ou, quando muito, também através de normas doutro ordenamento recebidas através de uma norma de remissão material.

Essa diversidade das regras de conflito de leis dos diferentes sistemas nacionais veio pôr em cheque o ideal de uniformidade de soluções a que aspira pela sua própria natureza o Direito Internacional Privado – ideal que se deveria traduzir na garantia de uma dada questão viria a ser apreciada por aplicação das mesmas normas materiais, qualquer que fosse o Estado em que viesse a ser julgada.

O problema é posto na doutrina em termos de saber qual o sentido da referência feita pela regra de conflitos à lei por ela designada: trata-se de uma referência material ou duma referência global? Por outras palavras: pergunta-se se, com a designação da lei aplicável feita pela regra de conflitos, se pretende escolher directamente as normas materiais que devem regular a questão, ou se se pretende, antes, determinar essas normas indirectamente, mediante uma referência à lei que abranja também as normas de Direito Internacional Privado desta lei. Responde no primeiro sentido a teoria da referência material, e no segundo, a tese da referência global.

32. Teoria da referência global ou devolucionista

A favor desta teoria alegaram-se fundamentalmente duas razões. A primeira é a de que a norma material estrangeira não pode ser aplicada abstraindo da regra do Direito Internacional Privado que, na lei a que pertence, lhe define o âmbito de aplicação no espaço: aplicá-la noutros termos para desvirtuá-la. A regra de conflitos constitui elemento integrante da hipótese da norma material, forma com ela, um todo incidível. Aplicar esta sem atender àquela não seria aplicar a lei estrangeira seria, antes, ir contra a vontade dessa lei.

A segunda razão alegada a favor da mesma tese é a de que o entendimento por ela propugnado da referência global conduz à harmonia jurídica entre leis que têm normas de conflitos divergentes.

Esta teoria significa que a ordem jurídica tem que ser vista como um todo, logo a referência feita pela norma de conflitos portuguesa irá chamar o Direito Internacional Privado da outra ordem jurídica e esta considerar-se-á ou não competente.

A teoria do reenvio ou devolução tem sido praticada pelos tribunais europeus sob duas formas: sob a forma de devolução simples e na modalidade de devolução dupla ou integral. Fala-se em devolução simples quando o ponto de vista da referência global se aplica só no momento da partida, isto é, à designação feita pela regra de conflitos do foro à lei para que inicialmente remete; mas já não se aplica nos momentos subsequentes – designadamente, já não se aplica à regra de conflitos estrangeira que devolve a competência à lei do foro. Pelo contrário a devolução dupla acolhe plenamente a ideia que está na base da teoria da referência global: o tribunal do Estado do foro deve julgar o caso tal como este seria julgado pelo tribunal do Estado cuja lei é declarada competente pela regra de conflitos da lex fori.

A devolução pode assumir duas formas: a forma de retorno da competência à lex fori[14] e a forma de transmissão da competência a uma terceira (ou quarta) lei.

33. Teoria da referência material ou tese anti-devolucionista

A referência feita pela lei do foro (L1) ao ordenamento jurídico em causa (L2) abrangeria somente as normas materiais desse ordenamento, não se admitindo sequer existência de normas de Direito Internacional Privado. Fundamentos desta tese:

* Era necessário uma lógica na remissão da referência directa ao direito material interno: crítica, não se pode basear uma teoria num fundamento lógico porque a índole remissiva das normas de conflito terá que ser resolvida pelos princípios objectivos a prosseguir pelas principais normas de conflito; por outro lado, é também negar a principal estrutura das normas de conflito gerando assim lacunas.

* Respeitar a vontade soberana do legislador nacional: aceitar a tese da referência global, isto é, das normas de conflito noutro ordenamento, aqui valeria a prescindir dos elementos de conexão. A doutrina clássica entendia que a aceitação de um Direito Internacional Privado em L2 equivaleria a negar o nosso Direito Internacional Privado. Crítica, é uma visão que aceita uma apresentação conceitualista e o facto de aceitarmos outros Direitos Internacionais Privados não significa que devemos negar o nosso Direito Internacional Privado.

* Atende-se à vontade histórica das leis (das normas de conflito): as normas de conflito surgiram primeiramente como norma de referência material. Crítica, se o entendimento doutrinal na feitura das normas de conflito foi só o entendimento de natureza material não significa que não possa ter havido um progresso no Direito Internacional Privado com aparição das normas de conflito.

* Dificuldade de actuação prática da devolução: pode suscitar-se dificuldades gerais de conhecimento e aplicação do Direito Internacional Privado estrangeiro, por ex., L2, pode não aceitar competência para resolver a questão por existir no seu Direito Internacional Privado uma norma semelhante ao art. 22º CC (reserva da ordem pública).

34. Teoria da devolução simples

Preconizam a aceitabilidade da referência material como primeira referência, mas com um limite que é o segundo momento, que é o da referência material.

L1 remete para L2, sendo uma devolução simples esta é obrigada a aceitar.

L2 devolve para L1. L1 devolve logo para o direito material interno de L2 que é obrigado a aceitar. O art. 17º CC é o princípio geral.

35. Teoria da dupla devolução

Por via da qual as normas de conflito remetem para a ordem jurídica estrangeira mas L1 deverá regular a questão como ela seria julgada em qualquer outro ordenamento.

A teoria da referência global pode funcionar com limites, este é na segunda referência existir necessariamente uma referência material.

36. Princípios a ter em conta em matéria de reenvio: art. 16º CC

As regras de conflito, na construção do Direito Internacional Privado situam-se num segundo plano, num plano subordinado. O plano superior ou primário é constituído por dois princípios, o da estabilidade e o da uniformidade de que as regras de conflitos não apresentam a directa expressão pois estas são antes simples critérios de resolução de concursos.

Afasta-se, em tese geral, a doutrina da devolução ou do reenvio, aceitando-se como regra o princípio da simples remissão da norma de conflitos para a lei interna, em conformidade com a chamada teoria da referência material.[15]

Quando a norma de conflitos portuguesa fixar a competência de uma lei estrangeira, entende-se aplicável a lei interna estrangeira reguladora da relação jurídica, e não a lei internacional (norma de conflitos) se, porventura remeter para outro sistema legislativo. Este, em princípio, não é considerado pela regra de conflitos da lei portuguesa.

Sobre o art. 16º CC há que fazer duas observações:

A primeira é que, embora a atitude nele definida corresponda à que é própria da teoria da referência material, não se crê que tal texto possa ser interpretado como impondo uma certa concepção de fundo quanto ao sentido da referência de toda e qualquer norma de conflitos. A sua função não é doutrinal, mas prático-regulamentadora: verificada a inexequibilidade da devolução como regra geral e verificado também que a sua utilização em certos casos permite obter resultados valiosos, revela-se praticamente aconselhável partir da regra da sua não admissibilidade, estabelecendo de seguida os desvios que esta regra comporta.

A segunda observação a fazer é que, mesmo que porventura de devesse entender como princípio a regra do art. 16º CC certas soluções a que se chegaria através do reenvio poderiam ainda ser alcançadas por outros meios, como o princípio da favor negotti ou do respeito dos direitos adquiridos, pelo que aquele texto não obstaria a tais soluções, quando devidamente fundamentadas.

Os princípios mais altos do Direito Internacional Privado são princípios que exprimem uma justiça puramente formal, uma justiça unicamente atenta aos valores da certeza do direito e da segurança jurídica.

A regra, neste preceito consagrada de que a referência da norma de conflitos portuguesa à lei estrangeira determina apenas na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno dessa lei, obtém duas excepções, os arts. 17º/1 e 18º/1 CC.

37. As regras do art. 17º CC

O n.º 1 deste artigo prevê que a norma de conflitos da lei competente, segundo o Direito Internacional Privado português, remete para o direito de um terceiro Estado, e este considera-se competente segundo a sua norma de conflitos. Aceita-se a devolução, aplicando nesse caso o direito interno desse terceiro Estado.

A excepção deixa porém de ter aplicação no campo da competência da lei pessoal, diz o art. 17º/2 CC se o interessado residir habitualmente em território português ou em país cuja norma de conflitos considere competente o direito interno do Estado da sua nacionalidade.

Pode dizer-se, talvez, que a ideia da lei é a de que, no domínio do estatuto pessoal, em que são duas as conexões principais (nacionalidade e residência habitual), só há harmonia de decisões susceptível de justificar o reenvio quando ambas as leis designadas por aquelas conexões estejam de acordo. Ora, não é esse o caso em nenhuma das hipótese contempladas no art. 17º CC.

Note-se ainda que a segunda exclusão de reenvio, por força do art. 17º/2 CC, pressupõe que o Direito Internacional Privado da lex domicilii remeta para o direito “interno” da lex patriae. Significa isto que a referência da primeira à segunda destas leis deve ser uma referência material.

Segundo o art. 17º/2 CC o reenvio não será de admitir se o Direito Internacional Privado da lex domicilii persiste em considerar aplicável o direito material da lex patriae. Mas segundo o art. 17º/3 CC já assim não será, o reenvio já não será afastado se, tratando-se duma daquelas matérias que o texto enumera, a lex patriae remeter para a lex rei sitae e esta se considerar competente. Isto ainda que a lex domicilii seja a lex fori.

A lex rei sitae, embora ano tenha em princípio título para se aplicar em matéria de estatuto pessoal, pode querer aplicar-se às repercussões deste estatuto em matéria de direitos sobre as coisas situadas no seu território. E deve reconhecer-se que, neste ponto, ela é de todas as leis interessadas aquela que está em melhores condições para fazer vingar o seu ponto de vista, uma vez que as coisas sobre que se pretende exercer o direito se acham no seu território. Por isso se diz que ela é a lei dotada de competência mais forte ou mais próxima.

A manifesta finalidade deste conjunto de princípios é a de assegurar no maior grau possível a harmonia jurídica entre diversas legislações, dando prevalência, com um sentido bastante realista das soluções, à lei do Estado que se encontra numa situação privilegiada quando às relações jurídicas cujo o regime se trata de fixar.

38. As disposições do art. 18º CC

Este artigo ocupa-se do reenvio sob a forma de retorno de competências à lei portuguesa. Este retorno pode ser directo[16], ou indirecto[17]. Para qualquer dos casos, o art. 18º/1 CC estabelece o retorno só é de aceitar se o Direito Internacional Privado da lei designada pela regra de conflitos portuguesa devolver (directa ou indirectamente) para o direito interno português.

Dos termos da lei parece decorrer que a referência ao direito português por parte da lei estrangeira que o designa como competente há-de ser uma referência material.

A razão de ser do art. 18º/1 CC é a salvaguarda da harmonia internacional de decisões. Ora, no caso, tal harmonia será alcançada qualquer que seja a atitude que se adopte. A admissão do reenvio não é aqui um meio necessário para se alcançar a referida harmonia. Mas também a não prejudica de forma alguma. A isto acresce a vantagem de que, pela aceitação do retorno, os tribunais português aplicarão a lei portuguesa, o que facilita a administração da justiça assegurando uma aplicação mais adequada e mais rigorosa do direito.

Segundo o art. 18º/2 CC o retorno à lei portuguesa em matéria de estatuto pessoal apenas será de aceitar se o interessado tiver a sua residência habitual no nosso país ou em país cuja lei considere competente o direito interno português.

A primeira observação a fazer aqui respeita à diferencia entre os requisitos a que a lei sujeita a aceitação do reenvio na hipótese de transmissão de competência e aqueles a que ela submete a dita aceitação na hipótese de retorno. Neste segundo caso, a lei é mais exigente, pois afasta o reenvio não apenas nas hipóteses em que a lex domicilii considera competente o direito interno (material) da lex patriae, como no art. 17º/2 CC mas em todos os casos em que sendo a lex domicilii uma lei estrangeira, esta remeta também (em consonância com a lex patriae) para o direito interno português.

39. Coordenadas básicas do regime legal do reenvio em matéria de estatuto pessoal, casos omissos

Das disposições do art. 17º e 18º CC podem-se extrair conclusões bastantes significativas sobre o reenvio em matéria de estatuto pessoal. A primeira é a que respeita à relevância da conexão “residência habitual”, esta conexão é tão importante que, em princípio se deve exigir o acordo da lex domicilii para que se possa entender que há uma harmonia internacional de decisões capaz de justificar aquilo a que se chama o reenvio. Assim é, que devemos aplicar a lex fori, desistindo (digamos) da nossa regra de conflitos, quando as duas principais leis interessadas (lex patriae e lex domicilii) fazem aplicação do nosso direito material. Mas repare-se que não basta aceitar o reenvio que a lex patriae faz à lex fori: é preciso que esse reenvio seja confirmado por uma lei a que não chega a designação da nossa regra de conflitos: a lex domicilii.

40. Artigo 19º CC

a) Artigo 19º/1 CC

Segundo este preceito, do reenvio não poderá resultar a invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico que seria inválido ou eficaz segundo a lei designada pela nossa regra de conflitos, nem a ilegitimidade de um Estado que de outro modo seria legítimo.

b) Artigo 19º/2 CC: a lei designada pelos interessados

O reenvio não é de admitir no caso de a lei estrangeira ter sido designada pelos interessados, quando tal designação é válida. Quer este texto referir-se às hipóteses em que vigora o princípio da autonomia da vontade em Direito Internacional Privado, ou seja, àquelas em que a lei competente é a directamente designada pela vontade das partes. Trata-se, portanto, apenas das hipóteses abrangidas no art. 41º CC: obrigações provenientes de negócios jurídicos. Só neste domínio é que o Direito Internacional Privado português permite que a lei competente seja directamente designada dentro de certos termos, pela vontade dos interessados.

41. Ordenamentos jurídicos plurilegislativos

O art. 20º/1 CC estabelece como princípio básico o princípio segundo o qual, designada a lei de um Estado plurilegislativo em razão da nacionalidade de certa pessoa é o direito interno desse Estado que fixa em cada caso o sistema legislativo local aplicável. O art. 20º/2 CC esclarece sobre quais as normas do “direito interno desse Estado” que importa aplicar para determinar o sistema legislativo local competente: são as normas do direito interlocal e, na falta desta, as normas do Direito Internacional Privado unitário do mesmo Estado.

Por último, a 2ª parte do art. 20º/ CC determina que, na hipótese de nenhum dos indicados procedimentos nos fornecer a solução, deve-se considerar como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual. Esta última hipótese verifica-se portanto, quando não exista no Estado plurilegislativo um direito interlocal ou um Direito Internacional Privado unificado.

Por seu turno, o art. 20º/3 CC refere-se à hipótese de a legislação designada como competente ser territorialmente unitária, mas com sistemas de normas diferentes para os diferentes grupos de pessoas. Neste caso, manda a nossa lei observar sempre o estabelecido nessa legislação quanto ao conflito de sistemas.

[14] Retorno directo, se é a lei designada pela regra de conflitos da lex fori que manda aplicar esta lei; ou retorno indirecto se é uma terceira lei designada pela regra de conflitos da lei primeiramente chamada, que opera o retorno.

[15] Vide arts. 62º e 18º CC.

[16] Se é a própria lei designada pela nossa regra de conflitos que devolve a competência à lei portuguesa.

[17] Se o Direito Internacional Privado da lei designada pela regra de conflitos transmite a competência a uma outra lei, sob a forma de referência global, e estoutra lei retorna a competência à lei portuguesa.
 

Quando se houver de aplicar a lei estrangeira deverá se considerar qualquer remissão por ela feita a outra lei?

Art. 16. Quando, nos termos dos artigos precedentes, se houver de aplicar a lei estrangeira, ter-se-á em vista a disposição desta, sem considerar-se qualquer remissão por ela feita a outra lei.

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