Qual a relação entre diversidade cultural e desigualdade social no Brasil

O que produz a “diferença” e o que produz a “desigualdade”: os não-ditos na medida das desigualdades sociais perante a escola

1Quando se trata de analisar situações de desigualdade social, é importante começar por perguntar em que condições históricas uma pequena diferença social ou cultural se pode transformar numa desigualdade social ou cultural. Isto porque nem todas as diferenças são interpretáveis em termos de desigualdade social nem produzem sistematicamente um sentimento de injustiça. Basta, para tal, aludir a múltiplos casos e considerar as diferenças relativas aos objectos, às práticas e às competências sem grande valor, ou mesmo desvalorizadas, do ponto de vista das crenças colectivas mais commumente partilhadas.

2Por exemplo, enquanto a educação familiar quotidiana na infância for colectivamente considerada como uma tarefa difícil e ingrata, permanecer invisível e sem grande benefício material ou simbólico, será impossível interpretar a divisão clássica dos papéis educativos como uma apropriação do monopólio do exercício da educação infantil por parte das mulheres e, correlativamente, como uma injustiça social experimentada pelos homens dela afastados, ou seja, como uma desigualdade de género no acesso à educação das crianças. Inversamente, os homens renunciam facilmente às designadas tarefas menores/desvalorizadas (o “trabalho sujo” para utilizar a expressão de E. C. Hughes (1996), de forma a investirem em universos profissionais, públicos, remunerados em capital económico, mas também em capital simbólico amplamente reconhecido. No entanto, quando os pais se juntam em associações para reivindicar o direito de custódia igual após o divórcio e contestar a gritante “desigualdade” entre mães e pais (sendo que os juízes nas questões matrimoniais pouco mais fazem do que seguir os costumes familiares, que, até à data, fazem da mãe o actor principal da educação dos filhos, confiando frequentemente, salvo quando se estima incapacidade maternal, a custódia do filho à mãe), como é o caso em França desde há já algumas décadas, eles contribuem simbolicamente para a transformação de uma diferença social de género em uma desigualdade perante o direito de educar os filhos. Para que uma diferença produza desigualdades, é necessário que todos (ou pelo menos a maioria dos “privilegiados” e dos “lesados”) considerem que a privação de uma actividade, de um saber, do acesso a um determinado bem cultural ou a um dado serviço constitui uma falha, um handicap ou uma injustiça inaceitáveis.

3É por esta razão que a distribuição socialmente diferenciada das competências técnicas no domínio, por exemplo, da ourivesaria, da mecânica ou da costura, não produz injustiça nem desigualdade social: as nossas instituições e as nossas crenças colectivas não fizeram dessas competências específicas atributos primordiais nem fizeram da não-detenção/ausência dessas competências uma falha intolerável ou um “handicap sócio-cultural” insuportável. É também por esta razão que, no sistema escolar francês, a passagem histórica do latim à matemática como meio privilegiado de selecção escolar contribuiu para fazer da cultura literária clássica (“humanista”) uma cultura colectivamente menos invejável e socialmente menos desejável que no passado. Poderemos assim assistir, num futuro mais ou menos próximo, à transformação de uma desigualdade no acesso à cultura literária e artística numa simples diferença social, com as questões escolares centrais centradas nos pólos mais científicos (Lahire, 2004).

4A questão da desigualdade é, por isso, claramente indissociável da questão da crença da legitimidade de um bem, de um saber ou de uma prática, ou seja, indissociável do que poderíamos designar o seu grau de desejabilidade colectiva. De facto, o que traça a distinção entre a diferença social e a desigualdade social de acesso a toda uma série de bens, práticas, saberes, instituições, etc., é o facto de, nesta segunda situação, estarem em causa objectos colectiva e amplamente definidos como altamente desejáveis. Se, em geral, não se fala de desigualdade social nos jogos de cartas, na costura ou nas tarefas domésticas, é porque essas práticas (competências, saberes ou saberes-fazer), cuja distribuição diferencial podemos constatar objectivamente no mundo social, são globalmente entendidas como práticas especializadas (mais do que gerais) e secundárias ou subalternas (mais do que primordiais ou nobres). Assim, só podemos falar de desigualdade porque/quando há uma forte desejabilidade colectivamente definida. As “desejabilidades” cultivadas no interior de sub-grupos ou de pequenas comunidades nunca constituem as condições de possibilidade das desigualdades sociais. Para que isso aconteça, é necessário que a vontade de aceder a uma série de bens ou práticas específicas anime e motive uma população bastante mais vasta.

5Ora, também neste caso, as condições sociais necessárias para que uma vasta população seja abrangida por uma determinada categoria de bens, de saberes ou de práticas, são particulares. Relativamente à educação, o paradoxo reside no facto de, num país como a França, as diferenças sociais relativas aos saberes escolares eram muito mais fortes antes da transformação discursiva dessas diferenças em desigualdades (Lahire, 1999). Foi necessário que toda uma população fosse escolarizada e submetida à escolaridade obrigatória para que, num contexto económico onde o acesso às posições profissionais mais privilegiadas depende cada vez mais da obtenção de altas qualificações, as diferenças dos percursos escolares fossem colectivamente interpretadas em termos de desigualdades escolares.

6Assim, apenas quando a cultura escolar se transforma num valor social colectivalmente partilhado e condição de acesso a posições particulares na divisão social do trabalho se pode instaurar o discurso sobre as desigualdades sociais de acesso à educação. Isto recorda-nos o carácter fundamentalmente histórico (e mutável) dos sentimentos colectivos da alta desejabilidade de determinada categoria de bens, de actividades ou de saberes e obriga o investigador que mede habitualmente diferentes tipos de desigualdades a tomar consciência das crenças colectivas que constituem as condições simbólicas de existência dessas desigualdades e dos sentimentos de injustiça. Em vez de medir, sem reflexividade, a distância entre grupos sociais, classes sociais ou categorias sociais, convertendo automaticamente todas as diferenças em desigualdades, o sociólogo deve, antes de mais, tomar como objecto a génese dessas crenças colectivas, os processos de legitimação, de des-legitimição ou de re-legitimação dos diferentes tipos de bens, actividades ou saberes, e, no fundo, as lutas pela definição social “do que conta”, “do que tem valor”, em suma, do que é um “capital” aos olhos da maioria.

  • 1 Pierre Bourdieu refere-se à “lei social (…) que estabelece que o capital cultural vai ao capital cu (...)

7A metáfora do capital cultural (ou escolar) utilizada por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1970) mostra bem como, desde os anos 1960-70, a sociologia francesa dá conta do facto de que a cultura legítima, e nomeadamente a que selecciona a educação como sendo digna de ser transmitida, funciona, em formações sociais altamente escolarizadas, como uma moeda de troca que é desigualmente distribuída e que, por esta razão, permite aceder aos mais diversos e variados privilégios. Com base na metáfora do capital cultural, podemos perguntar como este se “transmite” ou “herda”1 de geração em geração, através de que processo este é monopolizado por uma elite, em que situações pode perder valor (por exemplo, num contexto de inflação de diplomas), ser reconvertido (noutras formas de capitais, nomeadamente económicos), transformado (passando, por exemplo, de uma forma literária a uma forma científica) pelas mudanças da estrutura dos mercados, etc.

8Porém, os investigadores estavam demasiado absorvidos pela sua própria luta científica contra as ideologias da educação democrática (a educação é democrática, dado que trata todos os estudantes, seja qual for a sua origem social, cultural, geográfica, o seu sexo, etc., de igual forma), da meritocracia escolar (o sucesso escolar depende do esforço e do trabalho de cada aluno), e mesmo da ideologia do dom (os talentos de uma população são distribuídos desigualmente de forma natural), para se perguntarem o que faz do diploma um capital. Eles não se questionaram sobre as condições históricas que fizeram da escola uma instituição passível de fornecer uma moeda particular: os títulos escolares. Desta forma, tenderam a universalizar um momento particular da história das sociedades ocidentais, altura em que a educação passou a desempenhar um papel central na reprodução das relações entre as classes sociais.

9Devemos a Jean-Claude Passeron, dezasseis anos após a publicação de La Reproduction, este não-dito do período dos primeiros trabalhos sociológicos sobre a desigualdade social perante a educação. Num artigo publicado inicialmente na revista Esprit, intitulado “Hegel ou le passager clandestin. La reproduction sociale et l’histoire”, Passeron lembra que a instituição escolar nem sempre cumpriu essa função, e que ela foi durante muito tempo objecto de resistência social por parte de uma parcela das elites:

“Ao longo da institucionalização e do crescimento dos sistemas de ensino existiu uma tensão específica, com fortes consequências tanto na historia social como na história dos costumes, resultado da resistência oferecida pela “educação nobre” (fundada sob uma direcção fisica e moral e acorrendo ao investimento nos pares) ao desenvolvimento do modo escolar da educação. No século XVIII, não havia correspondência entre a fronteira social e a fronteira da educação escolar. As pessoas de qualidade, pouco ou nada escolarizadas, dificilmente se distinguiam das pessoas do povo pela linguagem: isto atesta o carácter secundário da legitimação letrada da posição social e explica a função de indicador social reservado a outros simbolos, por exemplo: roupa, costumes quotidianos ou militares.” (Passeron, 1991: 101).

10Passeron sublinha assim o risco associado ao sucesso relativo da educação (escolarização generalizada, aumento geral do nível individual de formação escolar, massificação universitária), que pode levar esta instituição a fornecer uma moeda de troca cada vez mais desvalorizada. No futuro, o diploma poderá deixar de funcionar como uma moeda (ou um capital) e dar lugar a outros meios sociais de distinção mais raros, e neste sentido mais eficazes:

“(…) Devemos também considerar que ao banalizar a formação escolar, o sistema escolar tende a dispersar, do mesmo passo, a relevância do diploma ou da duração dos estudos como indicador social e, consequentemente, a enfraquecer o seu efeito próprio de legitimação das posições sociais, dado que deixa de poder beneficiar de um salto simbólico tão forte como o ‘tudo ou nada’ pelo qual os sistemas fechados da universidade tradicional traçavam claramente uma fronteira inequívoca e impossível de transgredir (...) entre a incultura naturalmente escolhida pelas massas e a glória cultural, ao mesmo tempo nativa e merecida, da elite diplomada.” (Passeron, 1991:102).

11Ao longo dos últimos trinta anos assistimos inclusivamente à perda de valor social da cultura literária e artística em detrimento de uma cultura científica. Poderemos também vir a conhecer, num futuro mais ou menos próximo, um mundo social onde ler literatura e conhecer as artes não será nem mais nem menos valorizante e distintivo do que fazer costura ou mecânica.

A quebra do valor espírito: Paul Valérie enquanto sociólogo da cultura

  • 2 As páginas da obra estão indicadas, entre parênteses, no corpo do texto.

12Tantas vezes considerado como a referência poética e teórica formalista por excelência, Paul Valéry é também o autor que propôs, num notável texto de 1939 intitulado “La liberté de l’esprit”2 (Valéry, [1939]1988), um modelo de interpretação dos factos culturais que não pode deixar de fazer lembrar aquele que Pierre Bourdieu construiu quarenta anos mais tarde. A sociologia da legitimidade cultural é muitas vezes louvada ou criticada por ser uma sociologia objectivista e crítica que, exterior ao seu objecto, impõe aos actores da cena literária e artística uma visão que está longe de ser a sua. A leitura do texto de Paul Valéry, académico e eminente actor da vida intelectual francesa da primeira parte do século XX, convida a revisitar este julgamento que assenta no pressuposto da existência de uma visão endógena, relativamente ingénua, comum ao conjunto dos actores.

13Paul Valéry constata que as pessoas da sua geração puderam observar ao longo das suas vidas uma mudança profunda do estado do mundo: “Elas admiraram coisas que hoje não admiramos; especularam, em suma, sobre valores cujo declínio era tão evidente, explícito e ruinoso para as suas esperanças e crenças, como a perda de valor dos títulos e das moedas tidos outrora como valores inabaláveis” (Valéry, [1939] 1988: 207). Para pensar essas transformações, o autor teceu uma metáfora económica: valor espírito, capital cultura ou civilização, preço ou cota de produtos feitos para o espírito, dinheiro essencial, mercado de negócios humanos, investimento, interesse, quebra ou baixa do valor do espírito, flutuação de valores, produção, consumo, oferta, procura, troca, comércio de espíritos, concorrência e negociação em torno dos gostos, da economia ou riqueza espiritual, etc. Valéry insiste ao afirmar que a “analogia” económica que utiliza no seu raciocínio é de tal modo “impressionante que ela mexe com a identidade e que uma vez apercebida esta semelhança é quase impossível não a perseguir ao limite.” (Valéry, [1939] 1988: 212) “Não pensem que me divirto com uma simples comparação, mais ou menos poética, e que passo da ideia de economia material à ideia de economia espiritual ou intelectual através de meros artifícios retóricos.” (Valéry, [1939] 1988: 215).

  • 3 Num outro texto que data de 1937, Paul Valéry escreve: “É evidente que, por outro lado, as novas fo (...)

14Além do mais, o objectivo de Valéry não é apenas cognitivo (compreender melhor os fenómenos culturais), tem também uma dimensão fortemente normativa. Trata-se claramente de alertar os leitores para o possível declínio dos valores culturais e espirituais tradicionais face aos valores materiais e utilitários3, mas também face aos valores culturais modernos. A mensagem que Valéry pretende transmitir é que se tomarmos consciência do carácter social e histórico (e por isso frágil e efémero) dos valores intelectuais, que podem sofrer uma depressão e declinar, apercebemo-nos em seguida de tudo o que necessita de valores fortes: o apoio às “coisas” culturais (monumentos, arquivos, bibliotecas, museus, laboratórios, conservatórios, etc.) e a manutenção da formação dos hábitos culturais que permitem a apropriação das “coisas” culturais em questão.

15O autor começa por explicar por que motivo emprega o termo “valor do espírito” como se do “valor do petróleo, do trigo ou do ouro” se tratasse: “Digo valor porque há aqui uma avaliação, um julgamento de importância, e também uma discussão sobre o preço que estamos dispostos a pagar por esse valor: o espírito. Podemos investir nesse valor; podemos persegui-lo, como dizem os homens da Bolsa; podemos observar as suas flutuações, sob não sei que cota da opinião geral do mundo sobre ele.” (Valéry, [1939] 1988: 211). Falar de valores, é assim tomar consciência da forte concorrência entre valores heterogéneos e da possibilidade de ver alguns deles desvalorizarem-se na concorrência entre si. “Podemos ver, nesta cota que está presente em todas as páginas de jornal, como é que ela entra em competição, aqui e ali, com outros valores. Pois existem valores concorrentes. (....) Todos esses valores que sobem e descem constituem o grande mercado de negócios humanos. Entre eles, esse pobre espírito, o valor espírito não cessa de baixar.” (Valéry, [1939] 1988: 211).

16Valéry imagina assim o espaço de confronto entre os gostos e as cores (pois contrariamente ao provérbio que diz os gostos não se discutem, o autor insiste no facto de os indivíduos o fazerem constantemente “na Bolsa, em inúmeros júris, nas Academias, nas páginas dos jornais)” como um mercado onde, em função do estado da concorrência, os valores se fixam “nesse mesmo instante, apenas por um instante” (Valéry, [1939] 1988: 214). No entanto, ao contrário do valor dos produtos materiais claramente objectivável nos preços (em valores quantificáveis), “a economia do espírito apresenta fenómenos muito mais difíceis de definir, pois estes não são geralmente mensuráveis, nem são mais observados por organismos ou instituições especializados para esse efeito” (Valéry, [1939] 1988: 214). Podemos dizer que a economia material se objectiva permanentemente em valores quantificáveis, enquanto a economia espiritual se objectiva frequentemente nos julgamentos verbais (e nomea­damente nos adjectivos qualificativos, qualificantes ou desqualificantes) que podem ser divergentes e contraditórios, e raramente nos prémios (literários, musicais, cinematográficos, etc.) ou nos títulos.

17Podemos ainda diferenciar os actores da sociedade em função da relação que eles mantêm com esses diferentes valores. Por exemplo, a propósito do valor espírito, há quem “aposte tudo neste, todas as suas expectativas, todas as suas economias de vida, de alma e coração” (aqueles cuja existência social depende o mais amplamente do capital cultural); há quem “se afeiçoe de modo medíocre”, quem fique indiferente às suas oscilações e o considere como “um investimento sem grande interesse”; quem “não aposte o seu dinheiro de sobrevivência nesse negócio”, e, enfim, “quem faça o possível para o reduzir” (Valéry, [1939] 1988: 212).

18A Cultura ou a Civilização é, assim, para Valéry, um capital“que se forma, que se aplica, que se conserva, que aumenta, que arruína, tal como todos os outros capitais” (Valéry, [1939] 1988: 222). Interrogando-se sobre a matéria de que é feito este capital cultura ou civilização, o autor fornece uma resposta muito próxima daquela dada pelo sociólogo contemporâneo: de um lado, as coisas, os objectos materiais (para o sociólogo, o “capital cultural objectivado”), do outro, as pessoas e os seus corpos, com os seus hábitos, uma disciplina intelectual, e as convenções (“capital cultural incorporado”):

“Este é antes de mais constituído por coisas, por objectos materiais – livros, quadros, instrumentos, etc., que têm a sua duração provável, a sua fragilidade, a sua precariedade. Mas este material não basta. Não mais do que um lingote de ouro, um hectare de boa terra, ou uma máquina. Estes não são capitais, na ausência de pessoas que necessitem de cultura e que se saibam servir dela. Notem-se estas duas condições. Para que o material da cultura seja um capital, este exige, também ele, a existência de pessoas que dele necessitem, e que se possam servir dele – ou seja, pessoas que tenham sede de conhecimento e de poder de transformações interiores, sede de desenvolver a sua sensibilidade, e que saibam, por outro lado, adquirir ou exercer os seus hábitos, uma disciplina intelectual, convenções e práticas necessárias para utilizar o arsenal de documentos e de instrumentos acumulados ao longo de séculos.”(Valéry, [1939] 1988: 222).

19Não há, pois, capital sem crença e sem competências: se assim fosse as coisas culturais seriam reduzidas a um stock disforme e inerte sem pessoas que acreditam na importância dessas coisas, conferindo-lhes um valor e tendo constituído os hábitos necessários à sua apropriação (consumo, avaliação, compreensão, etc.). São precisamente os fundamentos do valor “Cultura” que Valéry vê ameaçados à época em que escreve este texto. Desde logo, o autor considera que estão a desaparecer os amadores esclarecidos que, sem serem eles próprios produtores intelectuais, constituíam até então o público privilegiado das obras culturais:

  • 4 Paul Valéry descreve noutro contexto as “virtudes intelectuais mais elevadas e mais importantes” do (...)

“Eu assisti ao desaparecimento progressivo de seres extremamente preciosos à formação regular do nosso capital ideal, tão preciosos como os seus próprios criadores. Assisti ao desaparecimento progressivo desses conhecedores, desses inestimáveis amadores que, mesmo não sendo os criadores dessas obras, ou do verdadeiro valor a elas associado, eram juízes apaixonados e incorruptíveis, para os quais ou contra os quais valia a pena trabalhar. […] A vida intelectual e artística mais desinteressada e mais ardente era a sua razão de existir. Não havia espectáculo, exposição, ou livro ao qual eles não prestassem uma escrupulosa atenção.” (Valéry, [1939] 1988: 224).

20Para além do mais, os novos hábitos intelectuais ou culturais (Valéry não empregaria estes qualificativos que nós nos habituámos colectivamente a utilizar) veiculados nesta época são opostos aos hábitos necessários à apropriação de obras culturais (como o distanciamento, a recusa de sensações incoerentes ou violentas, Valéry, [1939] 1988: 254): época caracterizada por uma “agitação geral do mundo, propagada, desenvolvida pelo exagero de todos os média, época tomada por perpétuas agitações, por um nervosismo generalizado, pela instabilidade, pelas novidades e pelas notícias” (Valéry, [1939] 1988: 223), época da “moda e do efeito quotidiano, da futilidade e da confusão dos valores; época da diversidade da incoerência e da intensidade das notícias, dos espíritos perturbados, agitados ou irrequietos” (Valéry, [1939] 1988: 224).

  • 5 Paul Valéry (1984), “La presse, la radio, le cinéma tendent à la ruine de la culture”, Les Principe (...)

21Contraindo tais hábitos, as pessoas desta época, uma boa parte das quais não podia consagrar muito tempo à cultura fora das suas vidas de trabalho, deixam de estar em condições para apreciar os bens culturais clássicos. Elas são assaltadas pelos produtos culturais mais comerciais da indústria cultural e pela imprensa5, verdadeiros concorrentes no mercado cultural, não sendo este senão um sub-mercado incluído no “grande mercado das questões humanas”:

“Quem tem um emprego, quem ganha a vida e quem pode consagrar uma hora por dia à leitura, seja em casa, no eléctrico, ou no metro, esta hora acaba por ser consumida por episódios criminais, por disparates incoerentes, a ‘conversa da treta’ e os pequenos faits divers, onde a profusão e a abundância parecem feitas pa ra confundir e simplificar grosseiramente os espíritos. Os homens afastam-se irremediavelmente dos livros… Isto é fatal e nós somos impotentes perante esta fatalidade” (Valéry, [1939] 1988: 225). Valéry conclui: “Tudo isto tem como consequência uma redução real da cultura” (Valéry, [1939] 1988: 225).

Uma baixa mensurável

22Somos assim levados a constatar que, globalmente, a intensidade da fé na cultura artística e literária legítima tem diminuído sensivelmente ao longo dos últimos trinta anos. É, em todo o caso, o que vários inquéritos estatísticos permitem sustentar. Assim, comparando o inquérito “Lazeres” realizado pelo INSEE em 1967 e em 1987-1988 junto de indivíduos com 14 ou mais anos, Françoise Dumontier, François de Singly e Claude Thélot (1990) demonstram a significativa redução da proporção dos leitores assíduos (pelo menos 3 livros por mês) entre os estudantes (de três quartos para pouco mais de um terço) ou entre os quadros, seja qual for a sua origem social. No mesmo sentido, sucessivos inquéritos do Ministério da Cultura sobre as práticas culturais dos franceses indicam uma redução geral e regular das percentagens de leitores assíduos, como é o caso dos operários não qualificados e dos quadros e profissões intelectuais superiores, num período de 24 anos. A tal ponto que podemos encontrar mais leitores assíduos entre os operários não qualificados em 1973 (30%) do que entre os quadros actualmente (29%).

Quadro 1: Leitores que leram 25 livros ou mais, ao longo dos últimos 12 meses (%)

1973

1981

1988

1997

Quadros e profissões intelectuais superiores

48

34

33

29

Operários não qualificados, manobras, pessoal de serviço

30

23

18

7

Total da população

31

25

22

14

Fonte: Inquéritos “Práticas culturais dos Franceses”, Ministério da Cultura.

23Da mesma forma, quando pedimos aos estudantes de liceu, no final dos anos 80, para listarem actividades por ordem de preferência (brincar, fazer desporto, ver televisão, ouvir música, ler), apercebemo-nos do relativo desinteresse geral por uma actividade como a leitura: “As variações esperadas segundo o meio social da família não devem ocultar o facto de que a leitura não se encontra no topo da hierarquia. Enquanto um décimo dos jovens de meio superior atribuem o primeiro lugar a esta actividade cultural, cerca de um quinto não hesitam, num inquérito explicitamente centrado sobre a leitura, a declarar que é a actividade que mais rejeitam.” (Singly, 1990: 76). As bandas desenhadas estão no topo do género de leitura preferida (à frente dos romances), seja qual for a origem social dos adolescentes.

24O adolescente que se fecha nas suas leituras e descura a participação em formas elementares da vida de grupo causa a desconfiança dos colegas. “Para defender a ideia de que o leitor está isolado, os jovens fazem referência a uma partilha desequilibrada do tempo livre. Se se trata de um jovem ‘bulímico’, se no espaço escolar ele lê, é sinal de que os outros espaços são secundários. Os constrangimentos da vida escolar (de toda a vida social?) exigem um certo investimento pessoal não apenas nas relações íntimas mas também em relações banais.” (Singly, 1993a: 126; 1993b: 27-38). Se não for comedido na resposta, o adolescente corre no risco de ser julgado pretensioso. Este desinteresse, porém, não se reflecte apenas na leitura. Ele abrange todo um conjunto de sectores culturais classicamente muito legítimos:

“A frequência de teatros e de concertos, segundo o nosso indicador (ir ao teatro pelo menos uma vez por ano), conheceu uma evolução comparável à da leitura de livros. Desde logo, observamos uma média estável, o que significa que, embora o nível médio de escolaridade na sociedade francesa tenha aumentado, esta prática diminuiu: no geral, os franceses vão tanto ao teatro e a concertos como dantes, mas, para um dado nível de qualificação, vão menos. Sobretudo, é junto dos diplomados médios... que a redução da prática é mais sensível. […] Assim, a evolução da leitura de livros assume formas que encontramos […] noutras práticas culturais legítimas.”(Dumontier, Singly e Thélot, 1990: 73).

25Se os dados dos inquéritos não permitem um discurso de lamentação do declínio cultural ou da derrota do pensamento, estes assinalam transformações significativas relativas à relação dos franceses com a cultura.

Qual a relação existente entre desigualdade social e diversidade cultural?

No Brasil, a associação entre os termos “desigualdade social” e “diversidade cultural” é possível, pois apesar de nossa diversa formação cultural, a exclusão social apresenta-se como um fator de exclusão que se manifesta, majoritariamente, por meio da diferença entre as diversas culturas que formam a população ...

Qual a distinção entre desigualdade diferença e diversidade?

Enquanto pensar diferenças significa se render à própria diversidade humana, já abordar a questão da desigualdade implica em considerar a multiplicidade de espaços em que esta pode ser avaliada.

Quando se deseja estabelecer o conceito de diversidade cultural e desigualdade social?

Quando se deseja estabelecer um conceito de diversidade cultural e desigualdade social, percebe-se que há diferenças não só no significado da palavra, mas na constituição do próprio conceito. Diversidade possui significado diferente de desigualdade.

O que é diversidade cultural e social?

O que é diversidade social? Diversidade social é o encontro de pessoas de diferentes lugares e com experiências de vida diversas. Inclui variadas etnias, religiões, culturas, idiomas, identidade e gênero, classe social, níveis de educação, ritmo de aprendizagem, pontos de vista e habilidades únicas.