Documento: pdf (56 páginas) 19.3 MB Este 0 espelho de Mclchado de Assis em HO 6 urn livro cismatico ja pelo titulo, no qual estao reu- nidos tres elementos intrigantes: urn espelho, urn escritor -o maior de nossa literatura -e a HO. Ouanto ao espelho, conv6m lembrar que h5 de muitos tipos: o plano, que devolve nossa imagem invertida; a c6ncavo, clue a devolve invertida e re- duzida; o convexo, em que aparecemos invertidos e aumentados. A16m desses, ha os que nos defor- mam: uns nos esticam ate parecermos estranhos seres alongados e pontiagudos; outros, nos acha- tam e alargam, ate parecermos urn ovos bizarros, dotados de cabe¢as, pernas e bra?os atrofiados. Ha os coloridos, os com lenl:e de aumento ou de redu- gao. Por6m, qual mesmo deles devolve nossa ima- gem verdadeira? Esl:a preparado para a resposta? Entao la vai: nenhum. Por isso, nao fique a vontade a frente do espe- lho. Nunca! Pois o que estara vendo, na melhor das hip6teses, 6 sua imagem invertida. Essa caracte- ristica dos espelhos 6 que os torna tao procurados em parques de divers5es e em hist6rias de horror. 0 segundo elemento intrigante do titulo deste livro 6 o autor do conto "0 espelho", aqui adaptado. Machado de Assis. Machado de Assis deixou para os leitores do futuro uma heran€a maravilhosa, por6m ir6nica e mesmo sarcastica: tudo o que ele diz em seus textos realistas pode ser entendido de uma, duas, dez, infinitas maneiras, tal como urn espelho colo- cado exatamente a frente de outro: formam-se dois tdneis, urn em cada qual, em que e bastante facil qualquer urn se perder. Para quem le "0 espelho", ficara a eterna pergunta: o narrador do epis6dio foi trafdo pela ilusao do espelho e por seu esprrito Gis- mado ou efetivamente foi envolvido por uma situa- ?ao sobrenatural? Se escolher a primeira interpre- ta€ao, o leitor escorregara no terreno preparado por Machado de Assis com o sabao viscoso da ironia. Se escolher a segunda hip6tese, a de que o perso- nagem deixou-se enredar numa teia sobrenatural, a leitor ingressara no mundo do sarcasmo, nao lhe restando a fazer outra coisa a nao ser copiar o pr6- prio personagem: aproveitar a primeira oportunida- de e fugir correndo pelas escadas da narrativa. 0 terceiro elemento intrigante do titulo deste livro envolve a arte sequencial da HO, que pouco a pouco foi conquistando prestigio e hoje 6 aprecia- da e respeitada por bilh6es de pessoas no mundo todo. Tal como o espelho, ela absorve a imagem de tudo que se puser a sua frente. Por6m, tamb6m tal como o espelho, a imagem devoMda por ela nunca sera a ideal, mesmo quando o texto busca a maxi- ma fidelidade possivel em relag5o ao original, como e ci caso deste livro. Por .isso, r\este 0 espelho de Machado de Assis em HO, al6m da adapta?ao em que foi empregado o texto do pr6prio Machado em que se promoveram cortes, mas jamais altera€5es, o leitor ter5 mais dais espelhos em que se mirar o conl:o original in- tegral e uma resenha, "Machado de Assis ao espe- lho" para estimular a leitura e o interesse por esse genio da literal:ura e„. dos espelhos. \ < t ( J / ® ATg eNTAO, jAcO8iNA, pBRMAN8cEfIA cALAt7o, PeN6ANtro, coCHILANtro, SuA PARllcIPACAO NO C)EBATE NAO PA6GAVA t7B LIM Ou OuTRO F!B6MUNGO T}S AV" 4Cho . `. A I)16Cu66J2{0 6 A FOFun pcult)A po iN6TINTo BATALHAtroR, aLiE JAz No HOMEM CONO un HEFIANCA BB6TIAL. NEN cONje.ruRA, New c>pINLao, UMA Ou OulT}A POPE t2AR LUGAR A t)rs6gr\mMeNTo, E, coMo 6ABaw Eu htao piscuro. VAs, GE augF2EM OLiviR-ME cALAt}as, pc8sO CONTAR-LHBs uM cAso PE MINHA \/rpA, EN ore RE6GALTA A MA16 CLAfIA OEMONGtRACAO ACEFzcA I?A MTERLA pe Que sg iiIATA. Ow pRiMeiRO LLIGAR Nao HA UMA 56 AIMA, wi OLIA6... NAo At7Mrro R6pLicA. 6e ME REPLIAtw ACAf3o o cIARuro e vOu OOENR. A ALMA EXT6RIOR Pot)E 6gR uM E6prRrro, uM FLuitro, uM roMeM Murrc>6 HOMEN6, uM o8jgro, UMA opERAGAo. TtA cA606, F`OR ExeMPLO, en Cue LiM 6iMpiE6 BOTro tie cAMica e A Ali\^A EXTERic7R p8 un pE66OA. e6i-A cLAro auE o oFTcro t7966A 6EGUNPA ALMA G TIAN6MrriR A vit?A, COMO A PRLMEIRA; A6 PuAS coMFLeTAM o HOMEM awe G, MeTAFi5ICA^^Ei`iTE FALANt}o, UMA LARANJA. ® auen pERpe UMA t2A6 METAOE5, PERPE NAi.uRALMeNTE MgrAt7E t)A EX16T8NCLA;' i CA606 I+4 NAO RARo6, en QUE A peRPA t7A ALMA EXTEFIIOR MFLkIA A PA gx16T?NCIA INTBIFIA, AGORA, 6 PRgc160 GABBR ore A ALMA EXTERroF` Nao a g¢^ime A INI6II`A... Mut7A o€ NATURezA e t)g e5TAco. HA cAVALHeiRo6, pOFz exEMPLO, cujA ALMA exTERioR, Nc)6 faeiMeiR06 ANC€, FOI uM CHOCALHO Od un cAVALiNHO pe pAu, e Male iARt7E UMA pFzc^/EDORiA DE iRMANPAt7e, sLlpoNiiAMc>6. PELA MNHA PART8, CONHEcO LIMA 6gNHORA, NA vERPAt?e, G8NTiLr6siMA, auE MupA t7B ALMA exTeRioR ciNco, GgiG vEzg6 FOR ANC). t7uIANi.E A gsTAGAO LrRicA G A GP8RA; CE66ANcO A B6TA¢j{O, A ALMA gxTgRroR su86Tmui-6E FOF2 OUTRA: uM coNCEfaro, tiM BAiLg cO CA66INO, A Rna cO OuvlcoR, PE1120POLIS„. PERt)AC),' E66A GBNHofIA auow g? NAO AG RELATO, F\ORauE iRiA LONGS; Rg6TRiNjo-ME AO Epi6c>Dio pg auB LH'B6 FALEl: TINHA VINTE E CINCO ANCG, 8RA FOBRg, E ACABAVA pE SgR unMgAco ALFgRg6 I?A GunRPA NAcioNAL, Nao iM4G!NAM a AcONTECLMgNiio aLig i6ro Foi eM No6GA cA6A. M!NHA MziB Ficou Tao ORGULHct6A,J 1.Ao CONTENrrE.J PRm^Os E ilo6, FOI TUDO UMA ALEGRtA SINcgRA kpuRA. MEu ALFBRES QueF2ico.I © MBu ALFERg6.' CONFE6cO ore 6lNllo AT€ lNVBJA t7A Mck;A auE vigR A 6BB 6uA MULHBR. TIA VAf2COLINA, ME CHAME PE JofozINHO, CON0 0ARTE6! NAc>, t7e FOFZMA ALGtM^Ar G 6eNHOR ALFeRe6.J e LHe GARANTo Que eM TOIA A pROvj:NCIA Nco HA omo auE sejA MgLHcre I?o Qug voce, MBu ALFBpes.J i I i ® i i ' : I i 1 © 6BNHOR ALFeRgG.J e 6EMFRg ALFERB6; Ef2A ALFBRE6 PAPA C4 ALFBR86 PAfIA LA, ALFgRes A Tot)A A HORA. Njlc) POB GRACEJO, MAG A GERtc), E A VISTA me g6cRAvo6, aug. NATLIRALMENTE FORA P8LO ME6MO CAMINHO. BOA-TARP8, 68NHOR ALFgRg6.' E=E=- _I- uM CuNHAcO PgLA, iRMao co FINAtro pgcANHA, Cue All MORAVA, cO NG C;ivu"N A oE ouiT2A MANeifIA. GfIA a "6ENHOR ALFERE6", • .` -i ------,--=,--- _- ` sg LHE6 t7i66BR aug a ENTUGLA6MO t}A " VAF2COLINA CHEcOLJ AO PONTO P8 VANt)AR POB NO MELI OuARTO LIM GFIANt)i e6p8LHO, OBFIA RicA g MAGNrFicA, aLiB I)gGTOAVA tx7 RgGTO OA CASA, cujA MOBrLIA ERA MOPEGl.A E 6"PLE6„. GRANt7E. e FCh, COMO PIGO, LIMA ENof"E FiNgzA, FORauE a gGpgLHO EG1.AVA NA GALA; BRA A MELHOR P8CA t7A CA6A. MAG NAO HOLIvg FOR¢A6 auE A pEMovE66en I)O PBOP66ITO. Re6pONt7IA ore NAO FAZIA FALl-A, QUB ERA 66 POP ALGUM6 GgVANA6, e FiNALMgNTe aug o ''6ENHOB ALFgRE6" MgRgctA MUITO MA16, ® ® VAl gN1.8NpgR. OS FATCG exFLicARAO MEL HOB 06 6gNT"BNllos: o6 FAiice SAO TucO. A MELHC)R P8FINl¢AO rro AIroR Ow V AIf uM 88uO pE AurA NAMORAPA. i, 6g eEN Me LEMBRO, LiM FiLG6OFO A^mGO t78MONGTROu o MoVIMENTo ANt?ANtro, v AIN36 roe F pros . BIBLIOIECA FSTA6U-d "luIZ 0E BESSA" BELO NG v AINx VgR coiro, Ao Tempo en ore A coN6cleNciA eo HOMEM 6E oBLrTEF2AVA, A PO ALFgRBG Tci"N A,gis VIV A B lN1.EN6A. AS OORg6 HUMANA6, A5 ALEGRIA6 HUMANA6, 6E EFOw s6 iG6o, ML creiiNHAM r)e ^NI^ IiMA co^lpAIKro APAllcA Ou LIM 60RRlso I)E FAVOR. NO F" Pg lR86 6eMNA6, ERA oLrTRo, TOTALMeNTE oune. EfIA gxcLUGIVAMENT8 ALFEB86. ORA, LiM t7iA RecEBEu A flA MARcOLINA UMA NOTrcIA GfIAvg; UMA I?e 6uA6 FiLHA6, c,AI6roAcON\uN\LAVRAiDciR` RE6lt?ENl.E I?All A CINCO L€GUAG, gsrf AVA M¢+ E A NORIE. PRA Ndrie EXTT2EMC)6A, ARMOIJ LOGO tJMA VIAG8M Pet)lu AO CuNHAcO Qu8 F066E COM gLA, E A MiM aLiB iioMA66E CORTA I)0 6mo. ADEu6, aeRINHo,r APBu6' ALFgR86.' _--- OcRgro ore, 6E t`iao F06Gg A AFLl¢AO, 016Pof2IA a CONTRAfuc* PEIXABIA a CLINHAPO 8 lRIA CC)MIGO. VA6 o cgRTo i Cue Fiaugi 6G, COM o6 POuC06 E6CRAVcg t7A GAGA." ucoNFE55O-LHE5 awe pEGt7g LOGO 6gNTl tlMA GRANt)B OPRgs6AO, ALGLjM4 coi5A sEMELHAt`me Ao gFgrro I?E QUATRo PARgpE6 pg LJM cARCERg, 6uBITAMgr\me LBVANTAPAS BM lloRNO PE MIM. eRA A ALMA exTERic)R awe 68 REt)LIZIA; 86TAVA AGORA LMrrAt)A A ALGUN6 E6pJRrTOG BC¥AIS. a ALFERES CC)NTINLJAVA A POMNAR EM MIM, EMBOFIA A VIPA FOssg MgNOS INTgN5A, E A cciNscieNCIA MAIG t7GBiL." "ACH6l-ME 6G, GEM MA16 NiNGuaM eNTRe QUATRO PAFZEPE6, OLANTE I)a TERRGiRO pe6ERTO 8 t2A RO¢A ABANt)ONAt?A. NENHiJM FGLEGo LiuMAiro, CORFu A CA6A TOPA, A 68NZALA, Tut7O; NiNGueM uM MOLEarlNHo awe Fo66E." ---- i=- _- ----- _- ``AOOTBi a 6EGUNcO ALvlme, PARA NAO PEGAMPARAR A cA6A, E poBauE, Gg A MiNHA pFan^A eNFgRMA g6TAVA MAL, Eu LA 6oMENTe AUMENTAR A troR t)A MAG, 6BM REM€t)lo NENHLIM," I-ri I- "gGpgREI QUE o iRMAo t7o ilo Pg¢ANHA VoLi.A66g NAauELE I)IA ou No oLrTRo, VI6ilo auE iiNHA 5Aitx3 IAVIA jA TRINTA B GE15 Hc)RAG. a iRMao pO iic) feGANHA NAO vcuTOu Ne56E PIA NEM NO OuTRO, N" EM 1.Ot7A AQUELA GEMNA. MINHA 5OuciAO iioMc)u pROpORCGE6 eNORME5. wIA6 A MNwz pA56c)u GEM vE6TrGio t?ELE; A I.ARpe cOMECEi A 5ENTiR A 6EN6ACAO cOMc) t7E pE6cOA auE HouvE66E pgf2prpo Tot7A A ACAo NERvo6A, g NAo Tivg66E coN6cigNCLA pA ACAo Mu6cuLAR." "NUNCA 05 I)IA5 FORA^^ MA16 CC)MPRlt)06, NUNCA a 60L ABRAGOu A TBRRA COM UMA 086TINA¢AO MAIS CAN6ATIVA. A6 HC)RAG BATIAM t7E GGcuLO A GgcLILO NO vgLHO f2gL6Gro t7A GALA cujA pgNt7uLA TIC-1-AC, TIC-TAG, FERIA-ME A ALMA iNTERioR, coMo uM plpAf2c7rB CONflNuO OA ETEENlt)At7E." -, .'- ic= `--' ,I ` -_ -_- -_===--i-I -----I--:-== ----_- _ OH./ FORA BC)M 6E Eu PuDEGGE TEB MEOO.' VIVBRLA. MAG a cARACTgRr6Tico t)AOugLA 6rTUAGAc) g aug Eu NEN 6gauER Doc)IA TER MEtro, i6To G, a MEco VuLGARMEr`nE ENnoNt7ipo. "NHA UMA 68NSAcco iNexpLicAVEL. ERA COMO uM DEFURTO ANt2ANOC), uM cONanBULO, uM t3ONeco MF:cANico. a SONO, ELLMINANcO PC)FOwN00, efIA ottrRA coi6A, a Sol+ro I)AV Arlue AIjlro, NAO PELA fIAZAO cOMun t79 6ER IRMao pA MORT8, VA6 POB OLtTRA. A NgcgsGrpAt?g pg LIMA ALMA EXTgf2lop, I?EIXAVA ATUAR A ALMA INT8RIOR. N06 60NH06, FARPAVA-MB oRGULH06AMENrrg, NO MEio pA FAMn.IA B t7Os AMIG06, QUE ME ELOGIAVAM a GARBC), Cue ME ciiAMAVAM ALFER86; viNHA uM AMlco PB NOG6A CA6A, 8 PROMETIA-ME a PC€TO pE TENE^rng, oLrrRo o c7g cApn-flo ou MAJOR` E Tueo 16sO FA:#JA:NievIvgF<. OcOMiA ML, FRLri-A6, FARiNHA, cONSERVA6, ALGLiMA6 RArzg6 T06TAPAG AO FOGO, MAG 6upofITARIA TucO ALgGRgM3NTE, Gg NAo FORA A TgRRf\/EL 6rTUACAo MORAL EM ore ME ACHAVA,¢ i=- "REcrrAVA vER6o6, piGcuRGOG, TRgcHo€ LATINOS, LiRA6 pg GONZAGA, OiTAVA6 I)E cAMc>E6, t7eeiMA6, UMA ANioLOGIA EM TRINTA vOLUM86. A6 vezEG FAZLA GiNA6iicA; cmTRA PAVA BeLi6cGE6 NAG pgRNAG." OMA6 a EFErTO gfIA 66 UMA 6EN6ACAO FrG!cA PE cop Ou I?E CANGAcO, g MA16 NAC}A. TucO GiL2Ncio, uM 6iLeNcio vA6TO, ENORM8, iNFiNrro, APEhIA6 6uBLiNHAtro pELo ETERt`ro iic-TAG C?A PBNPLILA. TIC-1-AC, TIC-1-AC..," "NAO EfIA At36TBNCAO C)gLIBERAt)A, NAO TINHA MOTIVO; ERA uM MPuL60 iNcc)N6ciBNTE, iiM RecBio I)E ACHAf2-ME uM E tx)16, Ao ne6Mc> TEMpo, NAauELA CA6A 60LITAf2IA." i ® 0 espelho Esbogo de uma nova teoria da alma humana Ouatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, varias quest5es de alta transcen- dencia, sem que a disparidade dos votos trou- xesse a menor alterag5o aos esplritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia- -se misl:eriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitag6es e aventuras, e o c6u, em que as estrelas pesta- nejavam, atrav6s de uma atmosfera llmpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafisicas, resolvendo amigavelmente os mais arduos problemas do universo. Por que quatro ou cinco? Rigorosamen- te eram quatro os que falavam; mas, al6m deles, havia na sala urn quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja esp6r- tula no debate nao passava de urn ou outro resmungo de aprova€ao. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, nao sem instru?ao, e, ao que parece, astuto e caustico. N5o discutia nunca; e defendia-se da absten€ao com urn paradoxo, dizendo que a discussao 6 a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma heranga bestial; e acrescentava que os sera fins e os queru- bins nao controvertiam nada, e, alias, eram a perfeigao espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contes- tou-lha urn dos presentes, e desafiou-o a de- monstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu urn instan- te, e respondeu: -Pensando bern, talvez o senhor tenha razao. Vai sen5o quando, no meio da noite, su- cedeu que este casmurro usou da palavra, e nao dois ou tres minutos, mas trinta ou qua- renta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabe- ¢a, cada senten?a; nao s6 o acordo, mas a mesma discussao tornou-se diffcil, senao impossivel, pela multiplicidade das ques- tees que se deduziram do tronco principal e urn pouco, talvez, pela inconsistencia dos pareceres. Urn dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opini5o, -uma conjetu- ra, ao menos. -Nem conjetura, nem opiniao, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissenti- mento, e, como sabem, eu nao discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar- -lhes urn caso de minha vida, em que res- salta a mais clara demonstra?ao acerca da mat6ria de que se trata. Em primeiro lugar, nao ha uma s6 alma, ha duas... -Duas? -Nada menos de duas almas. [ada cria- 1:ura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se a von- tade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; nao admito replica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser urn esp`rito, urn flui- do, urn homem, muitos homens, urn ob`.eto, uma opera¢5o. Ha casos, por exemplo, em que urn simples botao de camisa 6 a alma exterior de uma pessoa; -e assim tamb6m a polca, o voltarete, urn livro, uma maquina, urn par de botas, uma cavatina, urn tambor, etc. Esta claro que o offcio dessa segunda alma 6 transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que 5, me- tafisicamente falando, uma laranja. Ouem perde uma das metades, perde natural- mente metade da existencia; e casos ha, nao raros, em que a perda da alma exterior implica a da existencia inteira. Shglock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perde-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; 6 urn punhal que me enterras no coragao." Vejam bern esta frase; a per- da dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, 6 preciso saber que a alma exterior nao 6 sempre a mesma.„ -Nao? -Nao, senhor; muda de natureza e de es- tado. Nao aludo a certas almas absorventes, como a patria, com a qual disse o Cam5es que morria, e o poder, que foi a alma exterior de C6sar e de Cromwell. S5o almas en6rgicas e exclusivas; mas h5 outras, embora en6rgi- cas, de natureza mudavel. Ha cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primei- ros anos, foi urn chocalho ou urn cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de ir- mandade, suponhamos. Pela minha parte, conhe?o uma senhora, -na verdade, genti- lfssima, -que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estagao llrica 6 a 6pera; cessando a esta€ao, a alma exterior substitui-se por outra: urn concerto, urn bai- le do Cassino, a rua do Ouvidor, Petr6polis... -Perdao; essa senhora quem 6? -Essa senhora 6 parenta do diabo, e tern o mesmo nome; chama-se Legiao... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experi- mentado dessas trocas. Nao as relato, por- que iria longe; restrinjo-me ao epis6dio de que lhes falei. Urn epis6dio dos meus vinte e cinco anos... Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a con- trov6rsia. Santa curiosidade! tu nao 6s s6 a alma da civiliza¢ao, 6s tamb6m o porno da conc6rdia, fruta divina, de outro sabor que nao a-quele porno da mitologia. A sala, ate ha pouco ruidosa de frsica e metafisica, 6 ago. ra urn mar morto; todos os olhos estao no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as mem6rias. Eis aqui como ele comegou a narragao: -Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Nao imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mae ficou tao orgulhosa! tao contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bern, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo nao foi outro senao que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho tamb6m que uma parte do desgosto foi in- teiramente gratuita: nasceu da simples dis- tin€ao. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de reves, durante algum tempo. Em com- pensa€ao, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomea?ao; e a prova 6 que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai entao uma das minhas tias, D. Marcoli- na, vitiva do Capitao Pe?anha, que morava a muitas 16guas da vila, num sitio escuso e solitario, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompa- nhado de urn pajem, que dal' a dias tornou a vila, porque a tia Marcolina, apenas me pi- lhou no sitio, escreveu a minha mae dizendo que nao me soltava antes de urn mes, pelo menos. E abragava-me! Chamava-me tam- b6m o seu alferes. Achava-me urn rapagao bonito. Como era urn tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moga que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a provi'ncia nao havia outro que me pusesse o pe adiante. E sempre alferes; era alferes para ca, alferes para la, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joao- zinho, como dantes; e ela abanava a cabe¢a, bradando que nao, que era o "senhor alferes". Urn cunhado dela, irmao do finado Peganha, que ali morava, nio me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", nao por gra- cejo, mas a s6rio, e a vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o pri- meiro servido. Nao imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar p6r no meu quarto urn grande espelho, obra rica e magnrfica, que destoava do resto da casa, cuja mobllia era modesta e simples.„ Era urn espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mae, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. Joao Vl. Nao sei o que havia nisso de verdade; era a tradiEio. 0 espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em par- te pelo tempo, uns delfins esculpidos nos angulos superiores da moldura, uns enfeites de madrep6rola e outros caprichos do artis- ta. Tudo velho, mas born... -Espelho grande? -Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor pega da casa. Mas nao houve for- ?as que a demovessem do prop6sito; res- pondia que nao fazia falta, que era s6 por al- gumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. 0 certo 6 que todas essas coisas, carinhos, aten?6es, ob- s6quios, fizeram em mim uma transforma- ¢ao, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu? -N5o. -0 alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram- -se; mas nao tardou que a primitiva cedes- se a outra; ficou-me uma parte minima de humanidade. Aconteceu entao que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das mo¢as, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapap6s da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A dnica parte do cidadao que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercfcio da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, nao? -Custa-me ate entender, respondeu urn dos ouvintes. -Vai entender. Os fatos explicarao me- lhor os sentimentos: os fatos sao tudo. A me- lhor defini?ao do amor nao vale urn beijo de moga namorada; e, se bern me lembro, urn fil6sofo antigo demonstrou o movimento an- da ndo. Vamos aos fatos. Va mos ver como, ao tempo em que a consciencia do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e in- tensa. As dores humanas, as alegrias huma- nas, se eram s6 isso, mal obtinham de mim uma compaixao apatica ou urn sorriso de favor. No fim de tres semanas, era outro, to- talmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, urn dia recebeu a tia Marcolina uma ... Comentários para: O Espelho Machado de AssisQuantas páginas tem o livro o espelho?Especificações Autor para link ASSIS MACHADO DE. O que fala o livro O Espelho de Machado de Assis?“O espelho”, subintitulado ironicamente de “Esboço de uma nova teoria da alma humana”, é um pretenso conto filosófico que discute o processo de formação da identidade de cada indivíduo e a relação entre subjetividade e vida social, demonstrando como o olhar dos outros interfere na imagem que fazemos de nós mesmos.
Quantas páginas tem o livro O Espelho de Machado de Assis?O Espelho foi um pequeno jornal que circulou no Rio de Janeiro, no segundo semestre de 1859, e que era publicado aos domingos. Em formato tabloide, tinha apenas 12 páginas, nas quais se espremiam poemas, romances em forma de folhetim, crônicas, artigos sobre assuntos variados e críticas teatrais.
Qual era o espelho da sociedade mostrado por Machado de Assis?Através de uma aguda análise do comportamento humano, Machado de Assis expõe em “O Espelho” que a nossa “alma externa”, ligada ao status e prestígio social, à imagem que os outros fazem de nós, é muito mais importante do que a nossa “alma interna”, ou seja, a nossa real personalidade.
|